Uma inédita e pontual rede de solidariedade se formou em todo o Brasil e no mundo para tentar combater os efeitos da pandemia do novo coronavírus entre os mais carentes. Em uma das ações mais destacadas, em São Paulo, franciscanos distribuem marmitas aos sem-teto em uma tenda no centro da cidade. Em Belo Horizonte e no Recife, voluntários levam alimentos aos moradores de rua. No Rio, o projeto SOS Favelas, organizado pela ONG Viva Rio, distribui cestas básicas para moradores de comunidades.
As pessoas se mobilizam como podem em ações solidárias em meio ao isolamento imposto para evitar a disseminação do vírus. Umas se colocam à disposição para fazer compras para idosos que não podem sair de casa, outras doam dinheiro a entidades assistenciais, compartilham ideias de exercícios e receitas, batem palmas de suas janelas para os trabalhadores da saúde que estão na linha de frente no combate à doença.
Em uma análise psicanalítica, esse tipo de experiência altruísta e amorosa surge quando o próprio indivíduo começa a ver que depende dos outros, quando consegue se identificar com as aflições dos outros. "O sofrimento do outro é uma espécie de eco do próprio sofrimento. O indivíduo começa a perceber que só em uma ligação com o outro ele pode se realizar, sobreviver. Ele necessita do outro", explica o psiquiatra e psicanalista Mario Eduardo Costa Pereira, professor e pesquisador do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp.
Momentos como o que estamos vivendo revelam para cada um, não apenas os problemas concretos (a doença, o vírus, a UTI lotada), mas também os fantasmas de cada um, as inseguranças.
"Nesses momentos, a criatura pode se desesperar, entrar em pânico, ou perceber, numa atitude solidária, responsável, altruísta, que aquilo que é para o bem dos outros é para o bem da gente mesmo", explica Pereira.
Para o psiquiatra e professor da Unicamp, este é um momento em que uma sociedade extremamente individualista leva um chacoalhão e começa a se questionar sobre o que está fazendo de suas relações, sobre o que é a solidariedade propriamente dita e qual é a responsabilidade de cada um para fazer o melhor possível.
Em uma reflexão sobre o momento, o professor de filosofia Clodoaldo Meneguello Cardoso, coordenador do Observatório de Educação em Direitos Humanos da Unesp, explica que essa pandemia mostra que só é possível combatê-la na solidariedade. Não a solidariedade filosófica, mas a solidariedade concreta, que passa por mudança de valores individuais e por mudanças de estruturas.
"Nós temos de fazer uma grande UTI de solidariedade. A iniciativa individual é uma coisa boa, mas temos de montar algo mais amplo, que passe pelos órgãos governamentais, que passe pelas empresas", afirma Cardoso.
O Observatório de Educação em Direitos Humanos da Unesp montou um projeto para fornecimento de cestas básicas para famílias carentes que está sendo enviado como sugestão para o Fundo Social de Solidariedade dos municípios. O projeto prevê a "adoção" de uma família em situação de vulnerabilidade por parte de uma pessoa ou empresa, que bancaria essa cesta básica mensal enquanto durar o isolamento social. Na proposta, a cesta básica iria direto do mercado para a família.
"Ninguém tem a fórmula, mas o espírito é que temos de entender e de pensar o mundo como um todo. A humanidade só é humanidade se for para todos. Se não, não é humanidade. A seleção natural é seleção natural, não é humana. A nossa vida humana é justamente humana porque nós de alguma forma contrariamos a seleção natural, para incluir todo mundo", afirma o professor.
Cardoso explica que a solidariedade é um princípio ético. "Mesmo passando essa pandemia, nós vamos ter um longo período de repensar valores. A dignidade humana tem um princípio, que é a solidariedade", diz o professor.