No primeiro dia de programação aberta ao público do 28º Festival de Teatro de Curitiba, atores, diretores e produtores mostraram que a arte responde rápido à política. Críticas ao conservadorismo, à hipocrisia e à alienação causada pelas redes sociais foram a tônica dos principais espetáculos desta quarta-feira.
"Mississipi", da Cia. de Teatro os Satyros, fez sua estreia nacional no evento, com um enredo que percorre a história recente da Praça Roosevelt, em São Paulo, local onde fica a sede da companhia. Moradores de rua, usuários de drogas, artistas decadentes e jovens solitários são alguns dos personagens que circulam e vivem nos arredores da praça e que contam as suas histórias de vida. A montagem lança mão de diferentes formas narrativas, como romance policial, espetáculo de denúncia e teatro-karaokê.
André Stefano | ||
Cena do espetáculo Mississipi |
Ao longo das mais de duas horas, surgem depoimentos e questionamentos sobre os espaços públicos e sua função nas cidades e, principalmente, sobre quem pode usufruir deles.
"O espetáculo partiu de histórias reais, de situações reais, mas sabíamos que não queríamos fazer um teatro documental, e sim um teatro épico narrativo. Usamos bastante ficção, mas é claro que são histórias conhecemos bem, que ouvimos falar, que nos contaram", afirma Ivam Cabral, um dos diretores de "Mississipi".
A companhia paulistana trouxe uma série de novos espetáculos para o festival, em uma celebração dos 30 anos de história do grupo. Além de "Mississipi" (que terá outra apresentação nesta quinta-feira, 28/4), a programação inclui "O Rei de Sodoma" (4/4 e 5/4), "Todos os Sonhos do Mundo" (1/4 e 2/4) e "Cabaret Transperipatético" (30/3 e 31/3), peça com elenco inteiramente não cisgênero.
De Curitiba, o destaque do dia foi o espetáculo "Fedra", da Setra Companhia. Desenvolvida a partir do texto "Amor de Phaedra", da dramaturga britânica Sarah Kane, a peça apresenta a família burguesa do mito grego de Eurípedes. Na versão dos diretores Eduardo Ramos e Michelle Moura para a paixão de Fedra pelo enteado Hipólito, comentários da internet trazem o enredo - recheado de cenas fortes - para os tempos atuais. A atmosfera intimista do palco da Casa Hoffmann contribui para gerar incômodo na plateia.
"Hoje em dia é difícil entender a ironia, mas insistir num espetáculo violento é falar sobre a violência em caráter de retórica do fascismo", afirma o diretor. "As pessoas não estão mais percebendo o que está acontecendo de fato, e isso é muito perigoso", completa.
Criada por Sarah Kane, a personagem Strofe, filha de Fedra, tem papel central no espetáculo. "A Strofe tenta maquiar a situação da família, está sempre colocando panos quentes, jogando a sujeira para baixo do tapete. Fazendo um paralelo com as redes sociais, ela seria uma blogueirinha, uma selfiane", compara a atriz Rubia Romani.
"Fedra" tem mais uma sessão nesta quinta-feira (28/3). A peça é um dos quatro espetáculos gratuitos da mostra principal do festival. Os outros são a Orquestra Mundana Refugi (5/4 e 6/4), composta por músicos de várias partes do Brasil e do mundo; "Quando Quebra Queima" (4/4 e 5/4), uma "dança luta" coletiva construída por estudantes secundaristas; e "Uma Frase para Minha Mãe" (1/4 e 2/4), monólogo que encena uma espécie de romance familiar.
Encontros formativos
No primeiro debate da série Interlocuções, que promove encontros, palestras, oficinas, filmes e outras ações formativas - com programação inteiramente gratuita -, o curador do festival Marcio Abreu falou sobre o processo de criação do espetáculo "Preto", da Companhia Brasileira de Teatro. "O teatro é sempre uma experiência coletiva, mas temos de ter cuidado para não nos apropriarmos do lugar do outro", afirmou. A peça, apresentada no festival do ano passado, trata do racismo, do preconceito, da violência, da empatia e da posição da "mulher preta e lésbica" como sujeito no mundo. O livro com o texto do espetáculo é um dos lançamentos da Editora Cobogó, que tem mais de 50 textos de dramaturgia em seu catálogo, à venda na Livraria do Sesc Paço da Liberdade.
Ao som do rock'n roll
Não é só a "juventude transviada" que gosta de rock, como mostra o espetáculo "Rockids - Clássicos do Rock para Crianças", que teve apresentação gratuita no Festival de Teatro de Curitiba. Segundo o elenco, os pequenos se divertem, dançam e invadem o palco ao som de clássicos de Beatles, Elvis Presley, Kiss e artistas nacionais, como Paralamas do Sucesso e Rita Lee. "Selecionamos o repertório pensando nas letras. Havia melodias dançantes, gostosas, mas como a letra era muito pesada, não dava para a faixa etária. Tem criança que entende, mesmo em inglês", conta a baterista Priscila Graciano. Um espetáculo para reunir a família com boa música.
Shakespeare para todos
Seja no palco, em praças ou nas ruas, as peças de William Shakespeare estão acessíveis a todos no festival. A Cena 4 - Shakespeare e Cia e o Instituto Shakespeare para Todos fazem adaptações dos clássicos do escritor inglês, tornando-os mais próximos da realidade brasileira com linguagem coloquial, figurinos contemporâneos e música regional. "A Megera Domada", por exemplo, tem trilha sonora com base no sertanejo, e as apresentações, nos dias 27/3 e 28/3, são no teatro SEEC. "A brasilidade é primordial para tornar acessível ao público, mas Shakespeare fala do humano e, assim, atinge todo mundo. Basta ter um pouco de sensibilidade", diz a atriz Marcella Marin. Outros textos importantes do dramaturgo, como "Hamlet" e "Rei Lear", são apresentados pela companhia nas praças da cidade, em pequenos trechos. E, para as crianças, o grupo preparou "Piro, Liz e Plin em o Livro Mágico - Romeu e Julieta para Crianças".
Mas o repertório não se resume a Shakespeare. O espanhol Miguel de Cervantes, contemporâneo do inglês, é lembrado com "A Saga de Dom Quixote e Sancho Pança", espetáculo de comédia e linguagem de palhaço também feito nas ruas. O ator Gabriel Marin conta que a peça é muito interativa. "Essa montagem é totalmente adaptada ao local. Um poste vira o gigante, uma pessoa da plateia é o rei. Tem uma pegada circense, queremos propor à plateia esse sonho do impossível."
As cores de Frida
A pintora Frida Khalo e as cores de suas obras são apresentadas no festival em "Frida, la Pasión". Conhecida por ser uma mulher vibrante e forte, Frida aparece no palco confrontando os acontecimentos de sua vida nos momentos que precedem a morte. "Quisemos contar a história de um momento pelo qual todo mundo vai passar, o acerto de contas no fim da vida", relata o diretor Ricardo Rizzo. A estética da pintora também está presente na montagem por meio de imagens. Artistas usaram a obra da artista para transformá-la em um filme de cores, que se torna mais vibrante ou pálido de acordo com o que acontece com a personagem no palco. "Momentos opressivos perdem cores", explica Rizzo.
A programação do festival pode ser conferida no site festivaldecuritiba.com.br.