Destaque no Festival de Curitiba, espetáculo com atores pré-adolescentes critica vida adulta

João Caldas
Peça é protagonizada por cinco pré-adolescentes e dirigida por Elisa Ohtake
Peça é protagonizada por cinco pré-adolescentes e dirigida por Elisa Ohtake

Traição, vingança, corrupção e moralidade não são temas comumente abordados no teatro infantil. Mas "Peça para Adultos feita por Crianças", um dos destaques desta sexta-feira (29/3) na 28ª edição do Festival de Curitiba, quebra regras e surpreende o público.

A peça, protagonizada por cinco pré-adolescentes e dirigida por Elisa Ohtake, mergulha em Hamlet para falar da alma humana, da vida adulta e de sentimentos que pouco têm a ver com o universo infantil.

Escrita por Elisa em parceria com o elenco composto por Davi Hamer, Felipe Bisetto, Joana Arantes, Michel Felberg e Vitória Raich -todos com idades entre 11 e 14 anos-, o espetáculo começa provocando a plateia: vocês, adultos, são chatos (e essa palavra sempre vem acompanhada de um grito estridente). Eles querem um mundo menos antropocêntrico e mais transumano. E encarregam-de de explicar esses conceitos.

Fazendo uso de uma analogia, Felberg explicou durante entrevista coletiva que "o antropocentrismo é como se essa sala fosse todo o universo e aquela mesa fosse o homem, e nós acreditássemos que tudo que está aqui só existe por causa da ideia de que a mesa é o centro, ou seja, de que o homem é o centro. Mas, no transumano, o homem está misturado a tudo e todos são iguais, não há superioridade de nenhum ser. Essa chave é igual a essa revista, por exemplo".

Para combater essas e outras ideias "erradas" dos adultos, eles propõem e realizam brincadeiras no palco, como desenhar figuras transumanas no próprio cenário e fazer o que sempre tiveram vontade na cama dos pais, ou seja, pular alucinadamente com dois baldes de pipoca. É uma defesa da espontaneidade, da diversão e da despreocupação infantil.

Na segunda parte do espetáculo, o grupo entra de cabeça na história de Hamlet e apresenta pequenos monólogos em que expõe suas próprias questões acerca da obra de Shakespeare. Michel admite que tem vontade de se vingar do irmão que "zoa" ele o tempo inteiro, Vitória revela quais são os fantasmas que assombram a sua vida, Joana lê frases marcantes da obra que ela diz ter precisado da ajuda de adultos para compreender.

Ao longo de um ano e meio, o grupo ensaiou entre brincadeiras livres e laboratórios artísticos. O resultado é divertido, engraçado e surpreendente. "Gosto de imprimir movimento nas coisas, deslocar, descontextualizar, tirar tudo do lugar. Além disso, tinha uma vontade pessoal de entrar em contato com crianças", conta Elisa, que selecionou o elenco entre integrantes da escola paulistana Casa do Teatro. Após os aplausos, o ator Paulo Cesar Pereio ainda faz uma participação especial. "Peça para Adultos feita por Crianças" permanece em cartaz no Espaço Parlapatões, em São Paulo.

Reflexões sobre a alma humana também permeiam os espetáculos da Stavis-Damaceno Companhia de Teatro, que comemora seus 15 anos com uma mostra especial no festival. Em "Árvores Abatidas ou para Luis Melo", Rosana Stavis brilha em um monólogo em que interpreta cinco personagens, explorando apenas a modulação da voz. Durante um jantar em homenagem a um grande ator de teatro, uma mulher percebe que está, na verdade, em uma reunião de talentos medíocres e tece críticas em pensamento a todos os presentes, permeadas de inveja, raiva e até admiração. "Aquela situação lhe desperta sentimentos complexos e contraditórios", conta a atriz.

Adaptada de um romance de Thomas Bernhard e encenada pela primeira vez pela companhia há dez anos, a história se passa em Viena, uma cidade que, segundo o diretor Marcos Damaceno, tem muito em comum com Curitiba, devido ao frio e ao clima provinciano. E várias histórias e situações retratadas foram inspiradas na realidade. "Muitas das frases do espetáculo eu ouvi aqui no Café do Teatro e anotei em um bloquinho", revelou o diretor Marcos Damaceno em uma entrevista em um café próximo à Caixa Cultural, onde as peças da companhia estão sendo encenadas durante o festival.

O repertório da mostra especial também conta com a montagem mais recente da companhia, "Homem ao Vento", uma reflexão sobre o ser e as relações pessoais. O espetáculo tem um tom bastante intimista. Disposta em círculo ao redor do palco, a plateia acompanha o processo de preparação de uma peça, o que seria a sua primeira leitura. Nesse ambiente, há a reflexão sobre o texto. Neste caso, um texto incompleto e desconexo, já que o autor desapareceu antes de terminar, o que faz com que o trabalho se torne mais complexo, na busca de saber quem são os personagens e como se relacionam.

"Árvores Abatidas ou para Luis Melo" e "Homem ao Vento" têm sessões ainda nos dias 30/3 e 31/3. Completam a programação "Psicose 4h48" (1/4 e 2/4) e "Artista de Fuga" (4/4 a 7/4).

Arte para todos

Uma das atrações do Fringe, mostra independente da curadoria oficial, o espetáculo "Aterra" se passa em Jacarezinho (PR) entre os anos 1920 e 1950 e narra a vida de um homem simples do interior, abordando questões do universo LGBT+. A sessão da sexta-feira (29/3) do monólogo, interpretado por Renan Bonito, teve a participação de um intérprete de Libras. "Para que o teatro seja realmente universal, todos os espetáculos deveriam contar com a tradução para a língua de sinais", alerta o ator.

Ao longo da programação do festival haverá outras montagens com recursos de acessibilidade para deficientes visuais e auditivos. "Dogville" (2/4 e 3/4) e "Abujamra Presente" (30/3 e 31/3), da mostra principal, e "Tistu - O Menino do Dedo Verde" (6/4 e 7/4), do Programa Guritiba, terão audiodescrição disponível em fones. A peça infantil "Malala" (30/3 e 31/3), do Guritiba, e "Ícaro" (6/4 e 7/4) e "Isto é Um Negro?" (30/3 e 31/3), da Mostra, terão intérprete de libras, assim como todas as sessões do Risorama.

Lugar de palhaço também é no teatro

Pela segunda vez, o Festival de Teatro de Curitiba recebe a Mostra de Circo-Teatro dos Comparsas, produzida pela Comparsaria Cênica e que ocorre dentro do Fringe. O circo-teatro era uma tradição dos grupos mambembes brasileiros, que acabou perdendo força na segunda metade do século XX, com o surgimento da televisão.

Nele, o palhaço ocupa o lugar central do espetáculo, que passa por várias situações cômicas ou satiriza acontecimentos de outros personagens. No total, são 15 apresentações, que ocorrem todos os dias do festival. Segundo Felipe Baluta, o palhaço Borracha da Trupe dos Comparsas, "os textos encenados são os mais clássicos do gênero, fruto de pesquisa da companhia", Além dos Comparsas, outros dois grupos, Circo Teatro Tubinho e Cia Sonora, compõem a mostra.

Mostra especial para crianças de graça

Cinco peças fazem parte da Mostra Cena Criança, que reúne espetáculos infantis gratuitos. Neste ano, duas delas são internacionais ("Locas Margaritas no Cena Criança", da Argentina, e "Callejeros", do Uruguai). Callejeros foi apresentada nos dias 28/3 e 29/3 junto de "Laia e o Voo da Imaginação", em sequência. "Como são mais curtas e com marionetes, optamos por colocá-las juntas.

As companhias também se conhecem e montaram um espetáculo", explica a curadora da mostra, Michele Menezes. "Locas Margaritas" (30/3 e 31/3) trata de beleza e aparência, quando um cão precisa enfrentar as pessoas que querem arrancar uma margarida que nasceu em sua cauda. As outras duas peças são sobre a história de Santos Dumont ("Alberto, o Menino que Queria Voar", 4/4 e 5/4) e sobre duas pessoas que vivem em locais opostos: na terra e no mar ("Experiência Teatral para Crianças", 6/4 e 7/4).

Confira a programação completa do festival no site festivaldecuritiba.com.br.

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