''A solidariedade tem que prevalecer"

Marcelo Machado/Estúdio Folha
Elaine Cristina, que trabalha no Centro de Saúde Menino Jesus, em Belo Horizonte

"Confesso que fui tomada por um tornado de sentimentos quando tudo isso começou. Desde março, a pandemia me desafia, não apenas como técnica em enfermagem, mas também como mãe, filha, neta, sobrinha e, sobretudo, como moradora de uma comunidade e cidadã.

Em meu trabalho no centro de saúde, o protocolo para o atendimento primário aos pacientes suspeitos de portarem o vírus da Covid-19 não nos permite um procedimento tão humanizado como o que estavamos acostumados.

Eu fico vestida como uma astronauta, com capote, luva, touca e máscara de visor facial. Isso nos distancia do paciente, é desagradável. A gente procura amenizar isso com o melhor acolhimento possível. É preciso ter calma e orientar a todos, confortar os desesperados, os idosos. Como conduta de pós-consulta, inclusive, os psicólogos do centro de saúde têm telefonado a esses pacientes.

Quando chego em casa, minha preocupação não para. Afinal, vivo em um pequeno lote com seis moradias que abrigam ao todo 23 pessoas da minha família, entre avós, tios e primos, além da minha mãe (Dávila Lucília, de 58 anos) e dos meus três filhos (Paulo Cauã, 17, e os gêmeos Caio e Isaac, 10).

Muitos dos meus familiares são de grupo de risco. Há idosos, diabéticos, hipertensos, cardiopatas e com problemas respiratórios. Criei regras de convivências e limites para tentar proteger a todos. Convencê-los disso é custoso no dia a dia. Sou tida como a bruxa má por chamar a atenção a toda hora (risos).

Não é fácil manter a serenidade. Entrei em desespero quando um de meus filhos (Caio) teve quase 39ºC de febre e dor de cabeça por dois dias e duas noites seguidas. Pensei ser Covid e passei as madrugadas conversando com Deus. Era uma sinusite, constatou o médico.

Apesar de tanta coisa na cabeça pelo trabalho e as preocupações em casa, eu não sei viver sem empatia pelo próximo. Nasci e fui criada na Vila Estrela, uma das comunidades que formam com o Morro do Papagaio e outras o Aglomerado Santa Lúcia, um dos maiores de Belo Horizonte, com quase 20 mil pessoas.

Já em abril pude perceber os impactos sociais e financeiros da pandemia na comunidade, onde a maior parte das pessoas é diarista, doméstica, porteiro, pedreiro, funcionário de lojas. Gente que normalmente estaria no trabalho estava andando pela rua, desempregada ou com o serviço suspenso ou a jornada reduzida.

Sou uma mobilizadora social quase que por herança genética. Minha família é conhecida na Vila Estrela como Família Centenária. Estamos aqui desde o fim do século 19. Tudo começou com o meu tataravô (Antônio Pedro), que trabalhava aqui como empregado da então Fazendinha da Barragem, na Colônia Vila Isabel.

O engajamento social da família teve início com meu avô (Antônio Juscelino). Ele foi dirigente de associações comunitárias. Minha mãe deu sequência e foi liderança também. Fui levada a esse universo por ela há quase 20 anos.

Atualmente, faço parte do Grupo de Mulheres da Vila Estrela e sou vice-presidente do Centro de Defesa Coletivo (CDC), a associação comunitária que representa as demandas da Vila Estrela e da Vila Santa Rita de Cássia (Morro do Papagaio).

Ao perceber que meus irmãos de comunidade estão sofrendo com a pandemia, busquei parcerias e doadores para arrecadar alimentos, roupas, máscaras, álcool em gel e materiais de limpeza.

Marcelo Machado/Estúdio Folha
Elaine entrega alimentos para o músico Edmar

Um dia consegui 17 caixas de leite com um clube nobre da zona sul. Formou-se uma fila aqui na porta de casa. Faço isso para me sentir bem. Não é para ser importante.

Fico feliz de poder ajudar a todos que posso, como o Edmar, um músico que está desde março sem poder exercer o trabalho e vem morando de favor nos fundos de um barracão, em um cômodo de madeirite de três por três metros que era um galinheiro. Consegui uma cesta básica para ele.

Eu sei o que é passar fome e necessidade. Quando tinha 8 ou 9 anos de idade, fiquei quatro meses comendo só fubá e dormindo no chão, em cima de papelão, passando friagem. Quando ajudo alguém, sinto que posso evitar esse sofrimento.

Estou fazendo a minha parte. A solidariedade tem de prevalecer."

Marcelo Machado/Estúdio Folha
Espaço Pago
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