Os caminhos da digitalização: mudanças nos negócios e nas emoções durante a pandemia

De um dia para o outro, as empresas tiveram que levar seus funcionários para o home office, a educação passou a funcionar a distância, e o consumidor teve de se abastecer quase que exclusivamente por meio do comércio eletrônico. Com o apoio da tecnologia, o mundo físico migrou para o espaço virtual e a chamada transformação digital evoluiu anos em questão de semanas.

Empresas e organizações que já tinham trilhado parte desse caminho, com investimentos anteriores em digitalização e conectividade, saíram na frente e ainda puderam ajudar sua rede de fornecedores e de colaboradores nessa jornada.

Em sua quarta edição, o talkshow virtual "Change Experience", da IBM Brasil, que discutia digitalização muito antes da pandemia, narrou as experiências de empresas na adaptação de processos para dar conta das urgências que surgiam nesse ambiente desconhecido. Os participantes, na maioria executivos de corporações que viveram o dia a dia desses desafios, deram particular atenção para as relações humanas por meio dos canais digitais, o cuidado com as equipes em home office e a satisfação do cliente no isolamento social.

Apresentado por Marcelo Tas, o evento contou também com pensadores como Luiz Felipe Pondé e Daniel Goleman, autor do best seller "Inteligência Emocional". Leia abaixo um resumo.

DIGITALIZAÇÃO NA PRÁTICA: CONSUMIDOR SATISFEITO

O primeiro painel teve a participação da empresária Luiza Helena Trajano, presidente do conselho de administração do Magazine Luiza, empresa já veterana na digitalização e reconhecida como caso de sucesso do ecommerce brasileiro.

A empresária contou o trabalho da varejista, que desde 1978 tem a IBM como fornecedora de tecnologia, para promover a digitalização também no seu "ecossistema", uma rede com milhares de pequenos e médios empreendedores que vendem seus produtos por meio do "marketplace" do Magalu.

Empresa já veterana na digitalização e reconhecida como caso de sucesso do ecommerce brasileiro, durante a pandemia o Magazine desenvolveu um projeto chamado "Parceiro Magalu", de venda pelo site por microempreendedores, que teve procura de 600 mil interessados. Vários deles são pessoas que tinham perdido o emprego na crise, sem qualquer experiência no comércio eletrônico, segundo Luiza Trajano.

No trabalho com esses parceiros, o principal desafio era capacitá-los para ter a mesma qualidade de serviço e satisfação do cliente do próprio Magazine Luiza. "Quer ver eu não dormir? Perco o sono se tiver um único cliente que reclama porque não recebeu um produto ou está insatisfeito com o atendimento. Fico mal, fico brava, como quando atendia no balcão e tinha só uma loja.", disse.

A própria Luiza Helena Trajano fez, pessoalmente, quase 400 lives durante a pandemia, várias delas direcionadas a esses parceiros, para falar especificamente sobre digitalização do negócio, que considera "uma cultura, uma forma diferente de fazer as coisas, e não um software" de comércio eletrônico.

Segundo Tonny Martins, as empresas que estavam mais bem preparadas em termos de tecnologia e de cultura digital saíram na frente para aproveitar oportunidades durante a pandemia. "O Magalu é um exemplo claro disso. Não só ajudou o cliente como a todo o ecossistema dele. Muitos lojistas se beneficiaram do marketplace, da inteligência artificial e da qualidade de atendimento digital e humanizado do Magalu. Foi um trabalho de muito tempo antes, que não aconteceu apenas durante a pandemia", disse Martins.

Como o Magazine Luiza, a IBM também atua com um ecossistema de dezenas de startups, grupos de desenvolvedores e universidades em iniciativas para levar tecnologias como blockchain e inteligência artificial para o maior número de usuários. A IBM desenvolveu o Centro de Inteligência Artificial para trabalhar com temas de impacto social e econômico junto com a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e a USP (Universidade de São Paulo), e o Open Ventures, iniciativa de inovação aberta conecta scale-ups ao ecossistema da IBM e de empresas parcerias para solucionar os principais desafios de negócio de cada setor.

Tonny explicou que tecnologias desenvolvidas pela IBM, como inteligência artificial e aprendizado de máquina, ajudam a viabilizar um atendimento ao consumidor de alta qualidade, em larga escala, mas com muita precisão. Ele atribui a melhora na velocidade de resolução de queixas e nos índices de satisfação do consumidor a uma combinação do atendimento por meio de assistentes virtuais (caso da Lu, do Magazine Luiza, que utiliza as capacidades de inteligência artificial de IBM Watson) com o trabalho de um atendente humano.

Pela tecnologia utilizada, esse profissional recebe informações precisas sobre a queixa e do próprio do cliente, facilitando na resolução do caso com rapidez e eficiência.

Como resultado dos aprendizados da pandemia, a empresária vê um avanço sem precedentes na digitalização. Segundo ela, que é uma liderança no setor, o país tem 50 mil varejistas, mas só perto de 5 mil tinham alguma presença digital. Depois da pandemia, ela acredita que o número deve ter dobrado e que 10 mil desses comerciantes tenham também suas lojas virtuais.

DIGITALIZAÇÃO DO RH

O segundo painel do Change Experience tratou da digitalização do Departamento de Recursos Humanos para atender demandas dos próprios funcionários, a maioria trabalhando remotamente em home office, longe da chefia e com dúvidas relativas a questões trabalhistas decorrentes da redução de jornada e de salário durante a pandemia.

Marcia Baena, vice-presidente de Gente e Gestão do Burger King, narrou a experiência da empresa, que emprega 17 mil colaboradores e recebe as mais variadas chamadas diariamente das equipes em todo o país. Os funcionários são atendidos por um assistente virtual chamado TOP (Tecnologia Orientando Pessoas), que conta com inteligência artificial de IBM Watson e funciona por meio do WhatsApp.

No Burger King, o TOP começou resolvendo demandas mais burocráticas, como marcação de férias, consultas de holerite, pedidos de reembolsos, entre outros. Depois de algum tempo, foi aprendendo a responder a perguntas mais complexas. Mesmo assim, dependendo da complexidade do caso, o assistente virtual encaminha o chamado para um funcionário da área.

Na pandemia, a primeira preocupação foi com a saúde dos colaboradores. As orientações feitas por meio do TOP eram mais ligadas a sintomas da Covid-19 e ao atendimento médico-hospitalar. Depois, disse a executiva, vieram as questões trabalhistas. O terceiro momento foi o da reabertura dos restaurantes, com orientações em relação à segurança sanitária, uso de máscaras e espaçamento de mesas.

Em um dos dias mais intensos da pandemia (4 de abril, data de pagamento de bônus), o assistente virtual do Burger King recebeu 6.000 chamados. Diariamente, são cerca de 2.000 interações. "Não saberia dizer o que teria sido passar pela pandemia sem o assistente virtual", disse Baena.

Para a executiva, como nas demais empresas, o maior desafio na gestão das equipes remotas do Burger King foi o de adaptação rápida ao novo ambiente, com unidades fechadas e a operação voltada ao delivery. Além da tecnologia em si, isso exigiu um esforço comportamental dos líderes no tratamento dos funcionários. "Foi a hora e a vez de o líder ser o hub de contato, suporte e confiança para a equipe", disse.

Marcia Baena defende que a experiência digital do consumidor final de uma empresa passa também pela interação que os próprios colaboradores têm internamente com essa tecnologia. "Não adianta falar de uma empresa super digitalizada se a experiência do colaborador não faz parte disso", afirmou.

EMPRESAS PREPARADAS PARA O FUTURO

O terceiro painel foi sobre o futuro das empresas, que discutiu o processo de migração para nuvem do sistema de gestão (ERP) da rede de lojas Multicoisas, feito pela Senior Sistema e pela IBM.

Com o acesso à nuvem, a Multicoisas ganhou agilidade para melhor se integrar com os sistemas de parceiros. Segundo Tiago Berno, diretor de TI da Multicoisas, a integração de sistemas com parceiros demorava em média seis meses antes dessa tecnologia. Com ela, eles conseguiram colocar 130 lojas em conexão com parceiros externos em apenas duas semanas.

Jean Vieira, diretor de marketing e produtos da Senior Sistema, enumera uma série de benefícios trazidos pela migração dos sistemas de gestão para o ambiente de nuvem, como produtividade, otimização da cadeia logística, ganho de escala e segurança da informação, que, segundo ele, podem ampliar o modelo de negócio de uma empresa.

"A cloud traz uma infinidade de soluções que podem ser acopladas ao ERP. É um hub de conexão fácil e ágil a todas as soluções disponíveis no mercado. Torna o sistema menos vulnerável, porque tem várias camadas adicionais de segurança do que quando está dentro de casa", disse Vieira.

Para Thiago Videira, gerente de cloud services da IBM, o futuro dos sistemas de gestão é híbrido, com as aplicações funcionando parte na nuvem e parte dentro do data center da empresa. Além disso, o mercado começa a ver clouds especializadas em determinadas indústrias, com condições de atender a demandas específicas de tratamento da informação de acordo com a exigência dos reguladores. "É o caso do setor financeiro, em que a IBM opera uma cloud que respeita compliance, sigilo e segurança dos bancos. No momento, a IBM desenvolve outro específico para telecomunicações por causa das novidades que virão com a tecnologia 5G."

CIBERSEGURANÇA

Segurança na internet foi o tema do quarto painel sobre digitalização, que teve a participação de executivos do Bradesco. O assunto virou prioridade máxima entre as instituições financeiras nos últimos meses com o aumento das ameaças de ataques virtuais e a vulnerabilidade das redes domésticas.

No início da pandemia, o Bradesco conseguiu colocar, em uma semana, milhares de funcionários trabalhando em home office, acessando o sistema do banco remotamente por meio de VPN (Rede Privada Virtual). O banco já vinha estudando como implantar o home office havia um ano e tinha desenhado o funcionamento do sistema.

Pinna contou que os funcionários levaram o computador do banco para casa para ter o mesmo nível de segurança no home office. "Tudo o que a gente coloca nos computadores dos bancos, conseguimos levar para casa. Colocamos o banco operando sem gerar um grande solavanco na nossa política de segurança", disse Pinna.

Para Fabio Campos, líder de serviços de segurança da IBM, as ameaças virtuais crescentes demandam treinamento contínuo das equipes, uma vez que o elo mais vulnerável continua sendo o usuário. Ele considera particularmente crítico o comportamento do profissional em ambiente remoto. O funcionário, disse, pode se ausentar por um instante da frente do computador e deixar uma janela aberta com uma informação sensível exposta.

Renato Augusto, gerente sênior de segurança do Bradesco, atribui a resiliência dos bancos aos ataques cibernéticos ao papel do regulador e à troca de informações entre as instituições financeiras por meio de reuniões da Febraban (Federação Brasileira de Bancos). "A indústria financeira acaba sendo bem robusta porque os bancos trocam experiências em relação a fraudes e ameaças. Os sistemas dos bancos estão bem robustos", disse.

VALORIZAÇÃO DA VIDA

O evento também reservou um painel para reflexão sobre os aprendizados com a pandemia e o isolamento social. O filósofo Luiz Felipe Pondé, colunista da Folha, viu a valorização da vida humana, em seus mais diferentes aspectos, inclusive o econômico, como uma das principais consequências da pandemia do novo coronavírus.

"Na pandemia, fomos confrontados com a morte, a doença e o medo. Nesse cenário, o valor da vida, inclusive pelo que agrega à economia, se revelou de forma dramática. Pela morte, a vida humana se mostrou como uma commodity essencial para o mundo empresarial", disse Pondé, ressaltando que sem funcionários e clientes as companhias perdem a razão de existir.

Para Pondé, a humanidade deve assimilar as mudanças que ocorreram com a pandemia sem a pretensão de ter soluções e explicações definitivas sobre o que aconteceu. Ele lembrou que a espécie humana tem 250 mil anos, sendo que os últimos 3 mil anos foram atípicos e pouco ajudam a entender o momento atual. "A pandemia mostrou que o ser humano continua sendo a velha espécie sapiens, meio paranóica, extremamente insegura, acreditando em qualquer bobagem que falam e, ao mesmo tempo, ansiosa para ter respostas, coisa que a gente nunca tem", afirmou.

Para Daniela Klaiman, consultora de comportamento do consumidor, a pandemia trouxe quatro mudanças principais de mindset que as empresas precisam levar em consideração para entender o mundo pós-pandemia.

Segundo Daniela Klaiman, o chamado público-alvo das empresas não pode mais ser compartimentado por idade, gênero, raça, estado civil e classe social. Especialmente entre os mais jovens, disse ela, essas características não dizem mais nada. "Um exemplo que gosto de citar é que o público de skate long board hoje é de homens com mais de 50 anos. Não é o adolescente como muita gente acredita", disse.

COMO ENCANTAR O CLIENTE

O penúltimo painel reuniu especialistas em transformação digital, marketing e comunicação empresarial para tratar da dificuldade das empresas de encantar o cliente em meio à pandemia.

O responsável pelo Relacionamento com Clientes, Comunicação, Marketing e Relações Institucionais do Grupo Fleury, William Malfatti, relatou o trabalho do laboratório para promover uma sensação de segurança aos clientes que, num primeiro momento, deixaram de fazer exames laboratoriais e de utilizar serviços de saúde que não fossem absolutamente urgentes por medo de contágio.

Como resultado desse ambiente, o atendimento domiciliar (serviço que já existia desde a década de 1950 no Fleury) cresceu 113% no último trimestre. O laboratório apostou no sistema de "drive thru" para coleta de exames, na telemedicina e criou um procedimento de registro parecido com o "check in" eletrônico das companhias aéreas. O usuário chega ao laboratório com toda a documentação organizada, pronto para o procedimento. "Chegou um momento em que as pessoas precisavam ter essa garantia de segurança para poder usar mais confortavelmente os serviços", disse Malfatti.

Marcelo Trevisani, CMO da IBM, destacou que os hábitos de consumo mudaram radicalmente durante a pandemia. Mais de 6 milhões de novos consumidores aderiram ao comércio eletrônico. Desse contingente, 80% gostaram da experiência a ponto de não pretenderem mais voltar a consumir da forma como faziam antes da pandemia.

"Imagina o que está por trás disso, quando você pensa na proposta que uma marca precisa entregar? Como foi a experiência ponto a ponto desse cliente? Como personalizar esse atendimento?", disse, lembrando do papel da tecnologia para responder a essas questões.

Segundo Trevisani, só 4% do potencial da inteligência artificial foi utilizado pelas empresas. Até 2023, de 30% a 40% das companhias devem utilizar a inteligência artificial para entender a emoção e a experiência de consumo das pessoas. "Mudaram os hábitos de consumo, e as empresas precisam estar sim preparadas, usando a tecnologia, para entregar esse valor", disse.

Gabriel Domingos, diretor de marketing e produto B2B da Vivo, disse que o setor de telecomunicações passou por um verdadeiro teste de resistência, adaptação e qualidade, especialmente nos primeiros dias do isolamento social, entre o fim de março e o início de abril. Naquele período, o setor teve de prover conexão para diferentes serviços, empresas e educação de uma forma totalmente diferente do que ocorria até então. "Poucos serviços foram realmente tão demandados 24 horas por dia, durante sete dias por semana, como telecom", disse.

Domingos contou que o tráfego de dados aumentou mais de 40% naqueles dias, sem interferir na qualidade dos serviços. "Tivemos o compromisso de todos os funcionários para mostrar ao cliente que tínhamos a melhor rede, a melhor cobertura, e que íamos fazer tudo para que as pessoas sofressem o menos possível naquele momento de isolamento", disse.

O diretor de Transformação Digital da Arezzo, Maurício Bastos, destacou a importância das empresas estarem preparadas para se adaptarem a cenários adversos e terem capacidade de reação, o que chamou de viés para ação diante de desafios, como o da pandemia.

Para Bastos, esse preparo decorre de um trabalho anterior no caminho da digitalização - no caso da Arezzo, disse, isso começou ainda em 2012, com o início do ecommerce. Segundo Bastos, esse preparo permitiu à Arezzo "virar a chave" na pandemia para atuar num ambiente que "virou 100% on-line".

"A tecnologia nos surpreende a todo momento e precisamos improvisar", disse.
"[Precisamos ter] Uma capacidade de ver e agir; menos 'business plan' e mais 'action plan"', completou.

INTELIGÊNCIA SOCIAL

O evento talkshow foi encerrado pelo escritor americano Daniel Goleman, jornalista científico que trabalhou no "New York Times" e é conhecido pelo best-seller "Inteligência Emocional". Nos últimos anos, Goleman tem falado sobre a importância das habilidades sociais, que agora foram colocadas à prova durante o isolamento social.

"É claro que a Covid acelerou o ritmo da transformação digital, mas uma coisa é sempre constante: a centralidade das pessoas. As pessoas têm se adaptado ao trabalho durante o lockdown e a esse momento intenso e angustiante. A questão é como você pode manter a sua equipe feliz e produtiva no meio disso tudo?", disse.

Goleman sustentou que quanto maior a empatia e a inteligência emocional que uma pessoa tem, melhor ela funciona em um ambiente estressante como o atual na pandemia. E isso se aplica tanto na vida pessoal quanto na profissional. "Líderes com essa competência conseguem inspirar e motivar os subordinados, criando um ambiente colaborativo, de alta produtividade, com maior satisfação profissional e menor rotatividade", disse.

Na visão de Goleman, as interações por meio de videoconferência impedem o contato pessoal e a troca de olhares, que criam cumplicidade, empatia, aprovação e alinhamento de objetivos nas equipes. "Pelo Zoom, você não pode tocar, não pode observar. Não há muita interação presencial. Se você olha para a câmera, não está olhando para a imagem da pessoa. E se olha para a imagem, não consegue olhar para a câmera. Acabamos perdendo as expressões genuínas, que permitem perceber como o outro realmente se sente", disse.

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