Seminário discute formas de redução de danos para tabagistas

O Brasil está em descompasso com países desenvolvidos como EUA, Japão ou Reino Unido, em que as pessoas que desejam continua a fazer uso de nicotina têm opção de comprar produtos que comprovadamente reduzem os males causados pela ingestão de toxinas produzidas pela queima do tabaco. No país, esses produtos não podem ser comercializados.

Esse foi o principal tema do Segundo Seminário Internacional de Redução de Danos sobre o Tabagismo, realizado nos dias 10 e 11 de novembro.

Online, por prevenção contra o novo coronavírus, o evento gratuito teve a participação de profissionais de diferentes áreas, como direito e medicina. Os usuários de dispositivos eletrônicos para o consumo de nicotina também puderam abordar suas vivências.

As mesas nos dois dias do evento discutiram políticas públicas de controle ao tabagismo, a legislação brasileira sobre o tema e como os novos produtos podem contribuir para a política de redução de danos, entre outras questões.

Dispositivos eletrônicos, como o tabaco aquecido, foram destacados como alternativas nesse sentido, por possibilitarem o consumo da nicotina sem promover a queima do tabaco.

Isso porque, sem queima, ou seja, a combustão, elimina-se o que a ciência reconhece como a principal causadora de doenças decorrentes do tabagismo: a fumaça. É nela que estão a mistura de compostos químicos tóxicos e o monóxido de carbono, inalados em um trago no cigarro convencional.

Autorizados em países da Ásia e da Europa, e nos Estados Unidos, o tabaco aquecido e outros dispositivos eletrônicos para fumar estão proibidos no Brasil desde 2009 pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Promovido por IPADS (Instituto de Pesquisa e Apoio ao Desenvolvimento Social), Faculdade São Leopoldo Mandic, Centro de Convivência É de Lei e o portal Vapor Aqui, o evento teve o apoio da Philip Morris Brasil e da ABRAMD Nacional (Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos Sobre Drogas). Leia abaixo um resumo das mesas.

MIGRAÇÃO CONSCIENTE E VULNERÁVEIS

O primeiro dia de debates foi aberto pelo publicitário, influencer e jornalista especializado em novas tecnologias para redução dos danos do tabaco Alexandro Lucian. Ele contou a própria experiência de ter migrado do cigarro convencional -fumava 60 deles diariamente- para um dispositivo eletrônico.

Desde a mudança, em 2015, Lucian se dedica ao tema. "Comecei nas redes sociais, ajudando as pessoas que queriam saber mais. Quando percebi que muitas dúvidas eram recorrentes, resolvi fazer um blog."

Lucian contou que os seus anos de atuação permitiram o contato com inúmeros casos de pessoas que, como ele, dizem ter sentido na prática os benefícios da migração. "Retomar o fôlego, voltar a sentir os cheiros, os gostos. Pergunte a quem migrou", afirmou.

Para ele, evidências empíricas do potencial de reduzir danos dos produtos que não queimam o tabaco deveriam ser suficientes para uma revisão da legislação brasileira.

Lucian lembrou que os brasileiros que desejam utilizar as alternativas ao cigarro são obrigados a recorrer ao mercado ilegal.

A segunda a falar foi a redutora de danos, psicóloga e mestre em psicobiologia Maria Angélica Comis.

Coordenadora-geral do Centro de Convivência É de Lei, ela atuou como assessora de políticas públicas sobre álcool e drogas na capital paulista.

Maria Angélica abordou o desafiador cenário de trabalhar a questão da dependência junto à população em situação de vulnerabilidade social. "Sobretudo as estratégias voltadas ao tabagismo, que ainda são menos discutidas."

Ela explicou que os fumantes entre esse público têm acesso a adesivos repositores de nicotina, psicotrópicos e grupos de apoio como forma de tratamento. Apontou, no entanto, que o método de abordagem, que visa a abstinência e tem eficácia em torno de 30%, mostra-se inapropriado no caso dos vulneráveis.

"São pessoas que muitas vezes não têm onde dormir nem o que comer, e que consomem o tabaco de diferentes maneiras e situações, normalmente em condições precárias."

Para ela, uma forma mais efetiva de ampliar as possibilidades de atuação junto a esse público é justamente criar novas estratégias baseadas na redução de danos.

Neste sentido, Maria Angélica ressaltou a importância do seminário para enriquecer o debate e contribuir para a construção de conhecimento sobre o tema.

"Com certeza, os resultados começam a melhorar a partir do momento em que essas discussões são tratadas desde a base da sociedade", defendeu a especialista.

Por fim, alertou que tão importante quanto o desenvolvimento das políticas públicas, é garantir o seu pleno acesso à população.

REDUÇÃO REAL E DESINFORMAÇÃO

Moderada pelo docente da Faculdade São Leopoldo Mandic, em Campinas, e coordenador de projetos no IPADS, Thiago Lavras Trapé, a segunda rodada foi exclusivamente dedicada à palestra do pneumologista Rodolfo Behrsin.

Doutor em ciências médicas, e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Behrsin falou sobre como experiências médicas podem contribuir para a definição de práticas de redução de danos do tabaco.

Baseado em relatório da Sociedade Americana de Câncer, ele destacou que cigarros eletrônicos e de tabaco aquecido têm potencial oncogênico até 90% menor que os cigarros convencionais, além de liberarem até 95% menos substâncias tóxicas.

Por isso, na opinião do médico, eles possibilitam uma abordagem capaz de minimizar, a longo prazo, os impactos em adultos já fumantes. "Sobretudo se o público alvo forem os pacientes que se recusam ou que não conseguem parar de fumar, como é recorrente entre esquizofrênicos."

Ao explicar o funcionamento de diferentes dispositivos eletrônicos e do tabaco aquecido, Behrsin mostrou como eles substituíram o processo de combustão (950º) pelo de aquecimento (350º). Com isso, em vez da fumaça tóxica, as novas tecnologias produzem vapor.

A mudança no processo, no entanto, não afeta a entrega da nicotina.

O especialista lembrou dos problemas de saúde e mortes provocados pelo consumo de vaporizadores no ano passado nos Estados Unidos. "Foram casos em que houve manipulação do líquido, com a adição de ingredientes oleosos [THC e vitamina E] que, quando queimados liberam pequenas partículas que se acumulam nos pulmões."

O médico acredita que casos como esses podem contribuir para o que chama de "desinformação geral sobre o tema". "Muitas vezes questões ideológicas se sobrepõem às médicas".

REGULAMENTAR É MELHOR QUE REPRIMIR

Mediada por Silvia Cazenave, doutora em toxicologia e ex-superintendente de toxicologia da Anvisa, a mesa de encerramento teve o advogado e doutor em direito penal, secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, Cristiano Maronna, e o advogado canadense David Sweanor, presidente do Centro de Legislação, Política e Ética em Saúde na Universidade de Otawa.

Maronna realçou a importância fundamental do debate e explicou que as drogas ilícitas são, como regra, relegadas a uma regulação dominada pelo mercado criminal, que fica entre a descriminalização e uma regulação estrita.

"Defendo a ideia de que reprimir é sempre pior que controlar e regular. Temos que abordar a questão dos dispositivos para fumar sob esta perspectiva", disse Maronna, que defendeu a política de redução de danos para todas as substâncias.

Para ele, a discussão deve considerar a própria política brasileira antitabaco. "Pode ser classificado como um caso bem-sucedido, exemplo de boa prática", disse. De 1989 até hoje, lembrou, os adultos fumantes caíram de quase 35% para menos de 10% no Brasil.

"Percebemos que as medidas foram tomadas no âmbito administrativo, sem que fosse preciso proibir nem produção, nem comercialização nem consumo", observa.

Preços mais altos, obrigatoriedade do uso de imagens relacionadas aos danos associados, proibição de propagandas, criação de ambientes livres de tabaco, tratamento disponível pelo serviço público fazem parte do pacote apontado como positivo.

Maronna defendeu mais debate sobre o tema. "Há muitos relatos sobre benefícios pela migração para os produtos alternativos, e a redução de danos alberga os cuidados com o tabaco, mas é preciso discutir, aprofundar, estudar."

Regular os produtos, ele aponta, é importante para criar canais legais de acesso, evitando a clandestinidade e o controle por criminosos.

"Isso seria mais nocivo do que uma legislação pensada, por exemplo, para que esses produtos fossem liberados apenas e exclusivamente a adultos fumantes".

Para David Sweanor, é preciso compreender o papel das políticas públicas na saúde geral da população e no aumento da expectativa de vida. Ele lembrou de medidas ligadas aos transportes, a equipamentos industriais, remédios e outros. Sempre com base na razão e na ciência. "Quando a gente encontra um risco, a gente tenta reduzi-lo", afirmou.

Ele falou sobre a importância da redução de danos, com uma abordagem pragmática, que empodera pessoas para tomarem melhores decisões.

Lembrou ainda que a tensão entre o lado racional e o lado moralista será sempre uma constante em políticas de drogas.

"Existe algo de profundo na psique humana que se opõe a coisas que depois serão aceitáveis e tidas como ideias muitos boas. Foram contra a vacina e até contra a bicicleta", disse.

Ao falar sobre nicotina, Sweanor lembrou que desde os anos 1970 é aceito que é a fumaça a principal vilã do cigarro. E falou de resultados práticos em países como Islândia, Lituânia e Japão, onde produtos de tabaco não queimado tiveram adesão suficiente para reduzir as vendas de cigarro em até 40%.

"O que conseguimos fazer foi mudar o ambiente social, criar uma demanda para que as pessoas cuidassem de sua saúde. Elas não podem simplesmente parar de fumar, estão procurando algo. Sabemos que, quando regulamos produtos a partir de pesquisas, as mudanças são massivas. Na alimentação foi assim, com os automóveis [também]. A lei é o que cria segurança".

INTOLERÂNCIA E RAZÃO

O segundo dia de seminário foi aberto pela mestre em psicologia social Mônica Gorgulho. "A redução de danos nunca foi terreno fácil. Porque reconhece a autonomia do usuário, responsabilidades e escolhas para a condução de sua vida."

Ex-presidente da Rede Brasileira de Redução de Danos e ex-membro da diretoria-executiva da Associação Internacional de Redução de Danos, ela lembrou o histórico de décadas de acusações por apologia às drogas sofridas pelos redutores de danos, inclusive ela.

As discussões voltadas à redução de danos do tabaco, ela acredita, novamente deixaram muita gente com o pé atrás.

"Recebi conselhos de não me envolver. Mas, por que tanta gente acha que eu corro o risco de algum envolvimento com a indústria? Sendo uma profissional que pode contribuir para a construção de políticas públicas, porque devo restringir meu leque de interlocutores? O que leva as pessoas a acreditarem nisso?"

Na moderação da mesa que contou com o jornalista Leandro Narloch e com um dos nomes mais fortes do mundo em política de drogas, o nova-iorquino Ethan Nadelman, Monica entregou uma questão aos palestrantes: "Afinal, existem discussões proibidas em políticas de saúde?"

Para Narloch, territórios proibidos percorrem os séculos. Ele lembrou que, na Idade Média, quem contestasse Deus acabava queimado. Que, nos anos 1950, o Macartismo reprimia norte-americanos com ideais socialistas. "Uma atmosfera de cancelamento parecida com a que a gente tem hoje. De perseguição a quem não se encaixa ou a quem ousa discordar", avalia.

"No século 21, as pessoas pensaram que estavam em uma época mais lúcida, sem tanto atrito de ideias. Na verdade, não. Estamos vendo é cada vez mais pessoas intolerantes à divergência, inclusive na academia".

Embora afirme que consenso seja uma coisa que não combina com a ciência, Narloch avalia ser perigoso que essa intolerância resvale na liberdade de discussão. "Isso é ciência. A ciência é discussão."

Sobre tabaco e redução de danos, citou a necessidade de se entender a diferença entre o que é perfeito e o que é possível. "Se as pessoas fossem santas, não teríamos problemas com cigarro, álcool. Mas políticas públicas são pensadas para pessoas reais, como elas devem ser."

Fundador da ONG norte-americana Drug Policy Alliance e PhD em ciências sociais em Harvard, Ethan Nadelman, também celebrou o fato de ter chegado à questão da luta a favor do tabaco sem combustão fazendo parte de uma história de trabalho em políticas de redução de danos voltadas a drogas ilegais nos Estados Unidos.

"Vimos nos anos 1980,1990 que a guerra contra as drogas estava fazendo mais mal para as pessoas do que as próprias drogas, violando os direitos humanos e fazendo com que usassem drogas mais perigosas."

Espalhamento do HIV, prisões cheias, problemas ambientais, desigualdade racial, corrompimento de polícia e agências governamentais são exemplos de consequências dessa guerra apontadas pelo especialista. "Os governos se recusavam a apoiar ou financiar a pesquisa", recorda.

A redução de danos pelo tabaco também o faz lembrar das dificuldades daqueles tempos. Ele identifica que, assim como no passado, ciência e opinião pública estão em lados diferentes em relação ao tema.

"Cada vez mais há evidências a favor da redução de danos pelo tabaco, e se sabe que não queimá-lo é menos perigoso. Ocasionalmente os governos permitirão."

O novaiorquino voltou a citar a repressão à discussão aberta, ao discurso intelectual, e disse que representantes do congresso americano recusam-se a se reunir para falar de estratégias para o tabaco não queimado.

"O que se vê agora é que as agências governamentais de financiamento estão abertas a não examinarem as abordagens de redução de danos".

A combinação de interesses políticos, religiosos, morais, industriais, sócio-raciais pode explicar o cenário proibicionista, que tende a gerar lucros a grupos controladores, na opinião do diretor da Drug Policy Alliance.

A proibição é um equívoco em se tratando de formas de regulamentação, acredita o cientista. "Estamos aqui para apresentar à sociedade um tipo de conhecimento inconveniente. E estamos progredindo, respeitando políticas baseadas na ciência".

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