À espera de legislação, Judiciário se movimenta

Sem iniciativa do governo e do Congresso para regulamentar a Cannabis medicinal no país, pacientes vão à Justiça para ter acesso ao tratamento ou ao autocultivo

Martelo da Justiça

Pixabay

Na contramão de vários países desenvolvidos, o Brasil segue sem uma legislação que regule a Cannabis medicinal. Enquanto o governo e o Congresso emperram o debate sobre a legalização dos canabinoides, pacientes e familiares têm de arcar com os custos de importação ou recorrer ao Judiciário para ter acesso a substâncias cuja eficácia já é comprovada cientificamente.

A comissão especial da Câmara dos Deputados, em 2021, aprovou o PL 399-2015 para disciplinar o cultivo medicinal e industrial da planta – o texto, porém, não foi apresentado ao plenário e, consequentemente, nem enviado ao Senado. Alguns estados, como Rio de Janeiro, Paraíba, Rio Grande do Norte, além do Distrito Federal, aprovaram leis que permitem a realização de pesquisas e o cultivo da Cannabis por associação de pacientes.

Decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu salvo-conduto para garantir a três pessoas (uma mulher com câncer e dois homens com depressão) o direito ao cultivo para uso próprio sem o risco de repressão por parte da polícia e do Judiciário.

Mesmo assim, a insegurança jurídica permanece – o que é um entrave para investimentos, entrada de novas marcas de produto no mercado, desenvolvimento de logística e, principalmente, a possibilidade de preços mais acessíveis.

"Essa situação influencia diretamente na judicialização dos casos", afirma o advogado Emílio Figueiredo, fundador da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, um coletivo de advogados que facilita o compartilhamento de informações e o acesso à Justiça.

A falta de legislação específica também impede que a Cannabis seja disponibilizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que democratizaria o acesso ao tratamento, diz Figueiredo. Resultado: o paciente que recebe orientação médica para usar a Cannabis medicinal, mas não tem como custear o tratamento, recorre à Justiça.

CULTIVO DOMÉSTICO

Outro caminho que vem sendo explorado é o cultivo doméstico para a extração artesanal do óleo a partir da flor da Cannabis. Um processo trabalhoso, mas possível para quem não tem recursos financeiros e saúde para esperar durante anos pelo tratamento na fila da Justiça.

Mas o plantio medicinal, apesar da recente decisão do STJ, ainda é crime. O que muitos fazem é assumir o risco: o paciente começa a plantar algumas mudas e entra com um pedido de habeas corpus na Justiça.

"Trata-se de um salvo-conduto, que costuma ser expedido rapidamente e garante que o paciente não seja preso", explica Gabriel Dutra Pietricovsky de Oliveira, advogado que conseguiu 36 autorizações judiciais para o autocultivo. Estima-se que há mais de 800 ações desse tipo no país.

Alcoólatra em tratamento, o turismólogo Pedro Moya, de 41 anos, conseguiu o habeas corpus para o plantio em menos de cinco meses – reforçado por um parecer favorável do Ministério Público, o que é raro. "A Cannabis diminui minha ansiedade e a vontade de consumir compulsivamente o álcool", conta ele. Orientado pela psiquiatra Eliane Nunes, ele começou a fazer o curso de Cannabis Medicinal da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e entrou para o projeto MMJ (Mulheres e Mães Jardineiras), ambos na Paróquia São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo.

O salvo-conduto de Moya permite que cultive até 40 plantas, produza o próprio óleo e importe sementes. Tudo isso para que não dependa dos medicamentos importados, caros demais para o orçamento dele. "Apesar de eficiente, o salvo-conduto é um instrumento jurídico frágil, que pode ser contestado pelo Ministério Público, por exemplo", diz Oliveira. A cada contestação, a medida protetiva pode cair e o paciente tem de recorrer novamente.

"A Cannabis avança no Brasil pelo campo jurídico", diz Rodrigo Mesquita, sócio do Melo Mesquita Advogados, especializado em serviços jurídicos no setor da Cannabis. Os sócios abriram o escritório em Brasília, mas, devido ao aumento da demanda de casos, expandiram-no para São Paulo.

A maior parte das associações de pacientes de Cannabis começou justamente com a iniciativa de uma mãe que conseguia o salvo-conduto de cultivo para o filho doente e acabava repassando o excedente para outras famílias que viviam o mesmo drama. No Rio de Janeiro, essa é a história da APEPI (Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal), fundada pela advogada Margarete Brito, 49, mãe de Sofia, portadora de uma síndrome rara que impede o desenvolvimento normal do cérebro e provoca convulsões.

Em São Paulo, a Cultive, que hoje tem 200 associados, surgiu com Maria Aparecida Carvalho, que conseguiu o habeas corpus individual para plantar e produzir o óleo de CBD (canabidiol, substância não psicoativa da Cannabis) para a filha Clarian, que sofria com repetidas convulsões e era refratária aos tratamentos convencionais. Em 2016, ela começou a ensinar outras mães a plantar. Quatro anos depois, pediu um salvo-conduto para a associação.

Atualmente a Cultive tem autorização definitiva para fornecer óleo a 21 pacientes associados. "Nosso objetivo é ampliar essa medida para outros doentes que estão na fila", diz Cidinha, como é mais conhecida.

Ela conta que, antes de aprender a plantar, recebeu óleo doado durante três anos de uma rede que atuava clandestinamente. "Eu precisava retribuir", diz.

Nova edição do Cannabis Thinking mostra amadurecimento do mercado
Nova edição do Cannabis Thinking mostra amadurecimento do mercado - Unsplash

Extratos de CBD vetados no SUS estão à venda nas farmácias

Além da importação, o paciente brasileiro que precisar se tratar com canabinoides pode ter acesso a alguns poucos produtos disponíveis no Brasil após decisão da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), órgão do governo com função de aprovar os produtos seguros à saúde.

Em 2015, a agência determinou que pacientes refratários –aqueles que não respondem a nenhum tipo de terapia – podem importar os medicamentos à base de substâncias derivadas da planta.

Em 2019, aprovou uma nova regulamentação interna, permitindo que farmacêuticas pudessem registrar no Brasil seus extratos de CBD, óleo medicinal à base de canabidiol, não como medicamentos e sim como produtos. Mesmo assim, os extratos têm de passar pelo mesmo processo técnico e burocrático exigido de todos os medicamentos registrados.

Algumas das farmacêuticas autorizadas pela Anvisa a vender seus produtos nas farmácias são as mesmas que tentam, sem sucesso, que eles sejam disponibilizados pelo SUS.

Há quase dois anos a farmacêutica Prati-Donaduzzi, primeira empresa nacional a fabricar no Brasil o extrato de CBD, oferece o seu medicamento ao governo. O mesmo acontece com a britânica GW Pharma, fabricante do Mevatyl.

"As duas empresas foram reprovadas pelo Conitec", diz Tarso Araújo, diretor executivo da BRCann (Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides). Ele se refere ao órgão responsável por auxiliar o Ministério da Saúde no processo de inclusão, exclusão ou modificação de tecnologias em saúde no SUS.

A Anvisa já aprovou o registro de 19 extratos de CBD, mas apenas produtos dessas duas farmacêuticas chegaram às prateleiras das drogarias. "No ano que vem, boa parte desses produtos deve estar disponível no mercado. Certamente isso vai representar um aumento de competição e, esperamos, reduções de preço", diz Araújo. "Mas como a demanda ainda é muito maior do que a oferta, os preços podem demorar a cair."