Mesmo com entraves legais e culturais a serem superados, investidores de peso já apostam no mercado ligado à Cannabis.
A Fortune Business Insights, referência em consultoria de negócios, estima que esse novo nicho movimentará US$ 197 bilhões em 2028 em todo o mundo. No Brasil, como há mais barreiras do que facilidades quando o assunto é Cannabis, o mercado nacional ainda está longe de seu potencial.
Apenas para se ter uma ideia: incluindo o tratamento de pacientes com dor crônica, cerca de 3,4 milhões de brasileiros poderiam se beneficiar do uso medicinal da Cannabis, o que representaria uma receita anual de R$ 4,6 bilhões após uma regulamentação mais ampla no país, segundo estudo da New Frontier Data, em parceria com a The Green Hub.
As possibilidades são inúmeras, mas foram os resultados positivos do CBD (canabidiol, substância não psicoativa da Cannabis) no tratamento da epilepsia refratária que atraíram os primeiros players interessados em fabricar o medicamento. "Iniciamos a empresa, em 2012, pensando justamente em atender à demanda de crianças com epilepsia refratária", conta Keila Santos, cofundadora da Revivid, que nasceu nos EUA e depois veio para o Brasil.
Nos últimos anos, a empresa investiu na diversificação do portfólio de produtos, lançando blends de CBD com melatonina e vitamina D3, por exemplo, além de óleos com outros canabinoides como CBN, CBG e o Delta 8 THC.
Investir em medicamentos à base de Cannabis não é tarefa fácil no Brasil. Nos EUA, por exemplo, o óleo de Cannabis não é considerado um medicamento, mas um suplemento. Por isso, nem todos os fabricantes seguem os padrões exigidos da indústria farmacêutica. Já no Brasil, os extratos só podem ser comercializados em território nacional se passarem pelos mesmos processos de produção que qualquer medicamento convencional. Essa é a condição para que consigam registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que explica, em parte, por que não existe uma grande oferta de produtos nacionais nas farmácias do país. As empresas ainda estão se adaptando às normas.
De acordo com a Anvisa, em 2021, foram vendidos R$ 300 milhões de extratos medicinais derivados da Cannabis no Brasil. A maior parte, no entanto, se refere à importação individual do óleo pelos pacientes. Trata-se de uma demanda que dobrou no primeiro semestre deste ano. De janeiro a junho, a Anvisa tinha autorizado a importação a 33.213 novos pacientes, um volume quase igual ao registrado nos 12 meses de 2021.
Segundo a a empresa de inteligência de mercado Kaya Mind, esse é um mercado com potencial de criar 177 mil empregos no Brasil. E pode movimentar R$ 26,1 bilhões em quatro anos, o que garantiria aos cofres públicos uma arrecadação de R$ 8 bilhões em impostos.
"Apesar do setor da Saúde ser o mais expressivo (26,9%), há outras áreas que ganham fôlego", diz Alex Lucena, sócio e chefe de inovação da The Green Hub. Depois do setor medicinal, o agronegócio (13,9%) e a tecnologia (11,1%) são as áreas que mais se destacam.
O interesse pelo mercado da Cannabis cresce ano a ano e pode ser dimensionado pelo volume de inscritos nas chamadas de startups da The Green Hub interessados no programa de aceleração da empresa. "Houve um aumento de 36% nas inscrições este ano em relação a 2021", diz Lucena.
"Ainda não existe uma produção nacional de fôlego", lamenta Patrícia Villela Marino, uma das coprodutoras do documentário "Ilegal, A Vida Não Espera", de 2014, que narra a luta das chamadas "mães da maconha" para conseguir o óleo medicinal clandestinamente quando a importação ainda não era regulada.
"Foi depois disso que decidi investir no setor da Cannabis", conta. "Eu acredito em um mercado articulado, sob uma lei nacional, que traga as melhores práticas em toda a cadeia de produção." Segundo ela, "a missão é criar um mercado que não seja exploratório, mas agregador, com envolvimento social e justiça reparatória."
Nomes de peso da área de saúde e da indústria farmacêutica também se juntaram ao grupo que acredita no potencial terapêutico, e econômico, da Cannabis. É o caso de Claudio Lottenberg, presidente do Conselho da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, sócio da Zion MedPharma, laboratório medicinal de Cannabis. E também de Theo van der Loo, ex-presidente da Bayer, que fundou a Natuscience, empresa de pesquisa científica.
Ele decidiu investir na área no ano passado, durante a votação do texto base do PL 399-2015, que está parado.
"Infelizmente, o preconceito é um grande entrave no país. Precisamos quebrar a resistência com muito diálogo para promover avanços regulatórios e de inovação nas áreas científica e comercial", diz o deputado Sérgio Victor (Novo), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Cannabis da Assembleia Legislativa de São Paulo.
O deputado é um dos autores do PL 1.180/19, que prevê o acesso à Cannabis no SUS, no âmbito estadual.
Na contramão de outros países, Brasil não investe na indústria do cânhamo
O cânhamo industrial foi um mercado desprezado por décadas, mas que está ressurgindo com força total. Planta da mesma espécie da maconha, ela é uma Cannabis com característica especial e importante para o comércio legal: tem apenas 0,3% de THC (tetrahidrocanabidiol, substância psicoativa), quantidade insuficiente para causar alteração no estado mental de qualquer pessoa.
Há 30 anos, apenas 10 países comercializavam a planta. Atualmente, sabe-se que pelo menos 50 regularizaram o plantio, que movimenta globalmente US$ 5 bilhões, segundo a New Frontier Data. Há cinco anos, esse mercado era de U$ 3,7 bilhões.
"Os EUA entraram oficialmente na corrida do cânhamo com a lei batizada de Farm Bill em 2018", diz Marcelo Grecco, co-fundador da The Green Hub. Um ano depois da aprovação, o país atingiu 36 mil hectares de plantação do insumo. Mesmo assim, o maior produtor continua sendo a China.
Na América do Sul, Chile, Colômbia, Equador, Uruguai e mais recentemente Paraguai também entraram no mercado industrial. O Brasil, no entanto, está de fora, esperando tramitar na Câmara e no Senado o PL 399-2015, que regula justamente o cultivo do cânhamo industrial.
"A portaria 344/98, da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), proíbe a produção, importação, exportação e manipulação do cânhamo", explica Grecco. "O texto mistura cânhamo com Cannabis com THC maior que 0,3%, usada para a produção de medicamentos controlados", diz ele, lembrando que a flexibilização da norma já ajudaria muito o país a explorar esse mercado.
"O Brasil tem tudo para ser um grande player mundial dessa commodity", diz Alex Lucena, sócio e head de inovação da The Green Hub. "Sol o ano inteiro, tecnologia agrícola e grandes extensões de terra são algumas das vantagens que temos."
Além de servir de matéria-prima para vários braços da indústria – da têxtil à da construção –, a planta é 100% aproveitável. Do talo saem as fibras para a indústria têxtil. Há marcas famosas, como Adidas, Nike e Levi’s, que incorporaram o cânhamo na fabricação de produtos. A polpa vira cimento e tijolo para a construção civil, enquanto as sementes dão origem a óleo para a indústria alimentícia e de cosméticos.