Discutir o marco legal para a Cannabis é urgente. A falta de regulação emperra as possibilidades de avanço do Brasil em direção à nova e pujante economia internacional do cânhamo industrial e da medicina à base de Cannabis. O alto desemprego que o país enfrenta já seria isoladamente uma boa razão para o tema ter avançado no Legislativo. Há ainda o grande impacto que essa agenda tem na área Social e da Saúde. Porém, mesmo com tantos argumentos, a Cannabis continua criminalizada no Brasil.
O desenvolvimento que o mercado teve até agora foi calcado em uma brecha aberta pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para atender pacientes que tinham o CBD (Canabidiol, substância derivada da Cannabis) como última e única alternativa de tratamento – o que levou à aprovação da importação do produto mediante controle do órgão em 2014.
No Legislativo, as matérias sobre o tema – inclusive o PL 399/2015, que regulamenta o plantio e a comercialização para fins medicinais e que poderia ser o novo marco legal – seguem paradas. Às vésperas da eleição, o Cannabis Thinking fez um chamamento para que o público refletisse sobre a responsabilidade de eleger legisladores conectados com essa agenda e cobrar do Legislativo e do Executivo ações para mudar essa realidade.
O evento foi realizado no CIVI-CO, em São Paulo, espaço concebido para debates pela empreendedora Patrícia Villela Marino, presidente do Humanitas360, atualmente uma das maiores influencers da chamada bioeconomia – que tem a vida como o centro das decisões. "Não precisamos ter as mesmas preferências", disse ela, na abertura do Cannabis Thinking. "Mas é fundamental a unidade de princípios pela vida, pelo bem-estar, pelos valores republicanos e pelo Estado de Direito. Esses princípios devem nos mover, principalmente ao exercer o maior poder que temos nas nossas mãos, o voto.
O tema do primeiro painel foi "Perspectivas regulatórias", mediado pelo advogado piauiense Rodrigo Mesquita, cujo escritório, Melo Mesquita Advogados, é conhecido em Brasília pelas ações e assessorias jurídicas realizadas na área da Cannabis. Ele foi um dos consultores que ajudou na redação do PL 399/2015, aprovado pela Comissão Especial da Câmara no ano passado e que acabou engavetado. "Não é possível debater a construção de um marco legal sem discutirmos os impactos negativos da legislação atual nas populações", disse Mesquita. "Pela coincidência do momento político que passamos, essa edição do Cannabis Thinking ganha relevância especial."
O maior impacto negativo do proibicionismo recai sobre os afrodescententes. Articuladora da Comissão Negra por Direitos, a advogada Sheila Carvalho lembrou que a lei das drogas é historicamente racista. "A primeira legislação sobre o tema é de 1830. Ela estabelece multa para os brancos e prisão para os escravos." Segundo ela, "a política de drogas ainda é um efetivo controle sobre os corpos negros, sobre os quais as regras se aplicam de forma mais dura se comparadas à dos brancos". Segundo levantamento feito pelo Núcleo de Diversidade e Igualdade Racial da Defensoria Pública de São Paulo, na capital paulista condenam-se mais negros (72%) do que brancos (67%). O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Para os especialistas, a prisão em massa é um problema, reflexo de grandes diferenças sociais.
"O encarceramento não é uma solução para as drogas", disse o ministro Rogério Schietti, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), que debateu o tema com o músico Marcelo D2, usuário declarado e atualmente dono de uma empresa de representação de óleos medicinais importados. O ministro lembrou que, quando era adolescente, a palavra maconheiro era o pior adjetivo que se podia imputar a um jovem. "O país continua muito conservador nesse tema", disse ele, reforçando a necessidade de mudanças na lei. "Não há debate no Legislativo nem no Judiciário sobre vencer o preconceito às drogas. Recebo 50 processos por dia para julgar, sendo 30% deles de acusação de tráfico."
Se do lado criminal o problema virou uma bola de neve, o STJ avança positivamente no reconhecimento dos direitos ao acesso à terapia medicinal à base de Cannabis. As decisões favoráveis a pacientes que pedem o custeio do medicamento de Cannabis ou o direito de plantar para fazer o próprio óleo refletem necessidades sociais e de saúde que o Legislativo tem ignorado.
Até por isso, a Anvisa virou o grande centro das discussões regulatórias, mesmo sendo apenas um órgão sanitário, que analisa e aprova as substâncias com permissão de comercialização no país. Trata-se da única porta por onde o mercado tem conseguido se expandir.
No final de 2019, a agência publicou a RDC (Resolução de Diretoria Colegiada) 327, que, pela primeira vez, permitiu a comercialização de produtos derivados de Cannabis – no caso, os óleos medicinais – nas farmácias brasileiras. Para isso, os laboratórios precisaram cumprir as mesmas exigências que qualquer medicamento. "O óleo de Cannabis ainda não é considerado um medicamento. Apesar de o Brasil produzir muita pesquisa com Cannabis, ainda não existem testes amplos de comprovação de efetividade em todas as áreas", disse João Paulo Perfeito, gerente de medicamentos específicos da Anvisa. Segundo ele, a RDC 327 está sendo revisada à medida que as pesquisas avançam.
O primeiro dia de debate do Cannabis Thinking foi praticamente dedicado ao tema da necessidade da construção de um marco regulatório, que depende do envolvimento da sociedade para pressionar por mudanças. Como fazer isso? "A articulação precisa ser o propósito e a tática, a operação de cada dia", disse Patrícia, com uma fala que resumiu o trabalho de "formiguinha" de muitos players que estavam ali. Já são muitos os envolvidos.
"O evento cresceu muito. Este ano 54 marcas ajudaram a construir o evento, sendo que 24 apoiaram de maneira institucional", conta Damaris Ribeiro, responsável pelo marketing da The Green Hub, que promoveu o evento. "A questão agora é trabalharmos juntos, e não em paralelo, para a construção do mercado."
CFM deve atualizar normas com base em dados, dizem especialistas
Em 2014, a menina Anny Fischer foi a primeira brasileira a conseguir autorização para importar a Cannabis medicinal. Portadora de uma síndrome que lhe causava 80 convulsões por dia, ela abriu a porta para os mais de 300 mil pacientes que, atualmente, tratam diversas doenças com os derivados da planta.
Pesquisas científicas comprovam a eficácia do uso do canabidiol para tratar, por exemplo, epilepsia, esclerose múltipla, dores crônicas do câncer e inúmeros estudos em andamento ampliam as perspectivas para o desenvolvimento de novos tratamentos. O Brasil consolidou um mercado pulsante com médicos prescritores, associações de pacientes e pelo menos 20 extratos de canabidiol (CBD) com autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para serem vendidos nas farmácias brasileiras.
No mesmo ano em que a família de Fischer conquistava o direito ao tratamento, o CFM (Conselho Federal de Medicina) publicou uma norma para orientar os médicos a usarem a Cannabis medicinal. Determinava que apenas os neurologistas e psiquiatras poderiam prescrever o CBD para casos de epilepsia refratária (que não reage aos tratamentos convencionais).
Neste ano, o CFM abriu consulta pública para que médicos contribuíssem para a revisão dessa orientação, que não reflete mais a realidade dos centros de excelência do mundo. Mas, em outubro, a entidade publicou nova edição mais restritiva do que a anterior.
A repercussão foi tão negativa que, dez dias depois, o CFM revogou a norma e instalou nova consulta pública, dessa vez aberta também à população, não apenas aos médicos. "O CFM se posicionou à revelia dos dados e do desejo de muitos pacientes de ter o direito a um tratamento", diz a empreendedora Patrícia Villela Marino. "Não há explicação para o conselho restringir a liberdade do médico em escolher a melhor terapia para o paciente", diz o oftalmologista Claudio Lottenberg, presidente do conselho administrativo da biofarmacêutica Biomm.
Na primeira consulta pública, a entidade recebeu muitas contribuições, inclusive da Associação Panamericana de Medicina Canabinoide (APMC). "Demos consultoria à entidade, mas ignoraram os dados", lamenta o psiquiatra Wilson Lessa Júnior, professor da Universidade Federal da Paraíba e membro da APMC. "Há milhares de estudos pré-clínicos e centenas de estudos clínicos." O Pubmed, ferramenta de busca de artigos científicos, registra 5.263 pesquisas com canabidiol e 7.223 sobre o sistema endocanabinoide.
"A quantidade de estudos poderia ser muito maior se não houvesse tanta proibição. Daí entra a armadilha: não tem estudo pois é proibido, e é proibido por falta de estudo", disse Lessa, referindo-se às pesquisas clínicas mais avançadas. "O professor Elisaldo Carlini [referência na área] já falava que seria importante montar uma Agência Brasileira de Cannabis Medicinal, seguindo os moldes da criada em Israel."
Foi graças à criação da agência que Israel iniciou o processo de medicalização da Cannabis, que resultou, em 2017, na publicação do GreenBook, apostila governamental de educação continuada de prescrição e indicação de Cannabis para diversas patologias. Israel descriminalizou o uso adulto da planta em 2019 e, hoje, a Cannabis é uma disciplina das faculdades de Medicina. Atualmente, quando se fala em indústria da Cannabis medicinal, o país está no topo do ranking mundial.