Legado foi a palavra-chave que orientou a quarta edição do Cannabis Thinking, evento anual organizado, em São Paulo, pela aceleradora The Green Hub. Foram dois dias de palestras ministradas pelos principais players do setor, que, independentemente do tema explorado, pontuaram a importância desse mercado crescer sobre os pilares do direito à saúde, da inclusão social e da sustentabilidade ambiental. "Queremos alinhar o fomento da nova economia com questões que também são fundamentais para o desenvolvimento do país", disse o fundador e CEO da The Green Hub, Marcel Grecco.
Responsabilidade social não é uma novidade, mas ganhou proporções maiores nas últimas décadas. "Há 20 anos, responsabilidade social corporativa era adotar a praça em frente à sede da empresa", lembrou o advogado Luciano Souza, sócio da Cescon Barrie, que mediou o bate-papo sobre justiça ambiental. "Isso mudou." Recentemente o termo foi substituído pela sigla ESG (Environmental, Social and Governance), utilizada para medir o valor de uma empresa com base no impacto de questões ambientais, sociais e governança. Empresas que assumem esse comprometimento são atraentes aos investidores que não usam apenas a métrica da lucratividade do negócio para escolher onde aportar o capital.
"Crianças e dólar são as duas palavras que orientam os investidores", disse Joseph William, fundador da Indev Capital, referindo-se a negócios que garantam o futuro das próximas gerações e que sejam realizados com a moeda mais forte do globo. Ele lembrou que os altos índices de desmatamento da Amazônia fizeram com que a Alemanha deixasse de enviar 35 milhões de euros ao Brasil que seriam usados na preservação ambiental. Fundos internacionais chegaram a assinar uma carta endereçada às embaixadas brasileiras de oito países, entre eles Estados Unidos, Reino Unido e Japão, para expressar a preocupação com os impactos financeiros do desmatamento na Amazônia e da violação dos direitos dos povos indígenas.
Durante o Cannabis Thinking subiram ao palco testemunhas de boas práticas que revelam o quanto esse mercado pode ser lucrativo e, ao mesmo tempo, abrir novas portas para várias frentes, como a democratização do acesso ao tratamento à base de Cannabis. É o caso da iniciativa da USA Hemp, empresa brasileira com sede nos EUA, que agora fornece óleo medicinal para crianças com síndromes raras do Complexo do Alemão, uma das maiores comunidades da cidade do Rio de Janeiro.
Logicamente nada acontece por acaso. A marca respondeu ao forte apelo de uma mãe nas redes sociais, que, ao constatar os resultados positivos do óleo de CBD (Canabidiol, substância derivada da Cannabis) no tratamento da filha, quis que as demais crianças portadoras de síndromes raras da favela onde mora tivessem a mesma oportunidade.
Rafaela França é mãe de Maria, mais conhecida como a Estrelinha no Morro do Alemão. "Descobri que minha filha é autista durante a pandemia. Ela estava com 3 anos. Maria batia a cabeça na parede e não aceitava comandos", contou a mãe, que entrou na Justiça para que a menina tivesse direito à terapia com o CBD. A decisão da liminar demorou quatro meses para sair –um tempo considerado até curto para os tribunais.
"Com o tratamento, ela começou a atender pelo nome, a interagir com a família. Começamos a ter qualidade de vida e ficamos mais tranquilos", disse Rafaela. "Quando vi a mudança dela, passei a querer a mesma coisa para outras crianças da favela." Ela tomou isso como propósito e saiu buscando parcerias nas redes sociais.
São muitas as pessoas que encabeçam as lutas pela melhoria da qualidade de vida da sociedade. Entre elas, Cassiano Gomes, fundador da Abrace Esperança, a primeira associação de pacientes a conseguir permissão da Justiça para o plantio e produção de óleos medicinais de Cannabis. "A associação nasceu na Paraíba por conta de uma grande necessidade da saúde e de bem-estar na região. O trabalho de Cassiano começou com melhora na condição da mãe dele com o CBD", contou Angela Dumond, que representou Cassiano no Cannabis Thinking. "Quando entrei na Abrace, há três anos, tínhamos seis mil pacientes. Hoje temos 36 mil associados, dos quais 20 mil não pagam pelo óleo."
"Pensar do ponto de vista de mudança e transformação social é discutir os espaços de vulnerabilidade, que não são cuidados e nem despertam o interesse do Estado", disse José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, instituição de ensino superior voltada para a inclusão de pessoas negras na América Latina.
José Vicente abriu o segundo dia do Cannabis Thinking, lembrando que os moradores das favelas são majoritariamente negros e que "sofrem o efeito mais potente do racismo estrutural, a exclusão". "Tanto a defesa de uma terapia quanto a de uma política de saúde pública consiste em um ato político valioso, que pode auxiliar na indução das transformações e das mudanças que esse tema traz", disse. Ele pontuou a estigmatização, a invisibilidade e a injustiça sofrida pelos negros no Brasil. Também defendeu uma mudança na atual legislação das drogas, ao lembrar que 40% dos negros detidos por tráfico de drogas são presos provisórios, ou seja, ainda aguardam um julgamento. "Isto é um crime que tem motivação na cor, na raça e no substrato histórico."