Programa valoriza conhecimento do aluno do ensino técnico e facilita acesso ao ensino superior

Por meio do Projeto Itinerário Contínuo, estudante tem créditos validados ao entrar na universidade e não terá de refazer conteúdos já aprendidos anteriormente

Estudantes durante aula antes da pandemia de Covid-19 em uma das 223 Etecs do Estado de São Paulo

Estudantes durante aula antes da pandemia de Covid-19 em uma das 223 Etecs do Estado de São Paulo Gastão Guedes/Divulgação

Aprender sempre foi o verbo favorito do garoto Andreas Luiz de Farias. Quando criança, os jogos de computador despertaram nele a vontade de mergulhar no universo da tecnologia e em suas infinitas possibilidades. De game em game, aprendeu que poderia estender esse conhecimento para outras áreas e, assim, definiu o caminho que queria trilhar na escola e no mundo do trabalho.

Hoje, aos 16 anos, Andreas está prestes a concluir o ensino médio e, paralelamente, o curso de Desenvolvimento de Sistemas na Escola Técnica (Etec) Prof. Horácio Augusto da Silveira, na zona norte da capital paulista. O próximo degrau, diz, é encarar o ensino superior e aprofundar o que já sabe em uma faculdade de tecnologia.

Mas, no Brasil, a falta de diálogo entre a educação profissional e tecnológica (EPT) de nível médio e as universidades faz com que, na passagem do curso técnico para o superior de uma mesma área, o estudante tenha de, muitas vezes, refazer um conjunto de disciplinas que repetem os mesmos conhecimentos já vistos anteriormente. "Hoje esse aluno terá de repetir conteúdos e isso acaba sendo um desestímulo", afirma Daniel Barros, coordenador de Ensino Profissionalizante da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo.

Andreas, porém, não terá de passar por isso graças a uma experiência inovadora que começa a ser implantada a partir do ano que vem pelo Centro Paulo Souza, autarquia do governo de São Paulo que abriga as Etecs e as Faculdades de Tecnologia (Fatecs). Trata-se do projeto Itinerário Contínuo, em que o aluno da EPT de nível médio tem reconhecidas as suas habilidades em um curso superior de tecnólogo ou bacharelado.

"Buscamos uma forma de permitir que o aluno do técnico iniciasse o ensino superior em uma fase mais avançada e, para isso, passamos a identificar onde havia sombreamento de conteúdo", afirma o coordenador.

"Buscamos uma forma de permitir que o aluno do técnico iniciasse o ensino superior em uma fase mais avançada e, para isso, passamos a identificar onde havia sombreamento de conteúdo."

Daniel Barros, coordenador de Ensino Profissionalizante da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo

A novidade começa justamente pelo curso de Andreas, de Desenvolvimento de Sistemas. Se ele optar por seguir seus estudos na mesma área em uma Fatec, poderá avançar um semestre e meio do curso, que tem duração total de seis semestres - uma redução de quase um terço da carga horária. Ele vai ganhar tempo e ter seu conhecimento valorizado.

O projeto Itinerário Contínuo nasce de uma parceria entre a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, responsável pelo Centro Paula Souza, e o Itaú Educação e Trabalho. O objetivo é desenvolver um currículo conjunto, com a participação de educadores da EPT de nível médio e do ensino superior, para elaborar e validar os conteúdos já aprendidos pelos estudantes do curso técnico.

Alunos da Faculdade de Tecnologia (Fatec) de Carapicuíba, na Grande São Paulo
Alunos da Faculdade de Tecnologia (Fatec) de Carapicuíba, na Grande São Paulo - Gastão Guedes/Divulgação

Barros afirma que o projeto faz parte do programa do governo de São Paulo de expandir o ensino médio profissionalizante no Estado a partir de 2021 quando começa a ser implantado o novo ensino médio, que prevê a integração da educação profissional e tecnológica com o ensino médio regular.

"Nós sabemos que, por necessidade, muitos alunos terão de começar a trabalhar assim que concluírem o ensino médio. Com um ensino profissional de qualidade, iremos formar esse estudante para que, ao entrar no mundo do trabalho, ele consiga gerar renda num emprego que tenha um valor agregado muito maior, um trabalho relacionado ao curso técnico que fez. E, se quiser seguir no ensino superior, ele terá um estímulo", diz Barros.

CHOCOLATE

Em São Paulo, o projeto começou pela área de tecnologia e deve ser ampliado para a área de gestão. Já na Bahia, a integração entre ensino técnico e universidade vai começar pela cadeia produtiva do cacau e chocolate. A secretaria estadual da Educação da Bahia, a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e o Itaú Educação e Trabalho estão elaborando um currículo para validar os créditos dos estudantes do curso técnico em agroindústria que queiram completar seus estudos no curso de tecnólogo de Cacau e Chocolate.

Na Bahia, a oferta de vagas de EPT de nível médio cresce a cada ano e o governo quer conciliar essa expansão com a valorização do conhecimento desses jovens.

"Percebemos que muitas vezes os alunos do técnico chegavam no primeiro ano da universidade e iam perdendo o interesse porque já conheciam o conteúdo, diziam: 'isso eu já sei'. Era preciso pensar em uma maneira de tornar o ensino mais ágil", afirma Janaina Zito Losada, pró-reitora de gestão acadêmica da UFSB.

A mudança deve ser implementada em 2022. Além de beneficiar o aluno, a medida também irá impulsionar a economia local, já que a região é uma das maiores produtoras de cacau do país, possui muitos pequenos produtores e necessita de profissionais bem formados para crescer ainda mais.

Assim como está sendo feito com este curso, há potencialmente muitos outros de diversas áreas que podem ser articulados desta forma, favorecendo a formação dos alunos. No Brasil, há mais de 30 mil cursos de ensino superior e 227 cursos técnicos de nível médio, ou seja, um potencial grande de articulação e formação integrada dos futuros profissionais do país.

"O papel da universidade também é o de ajudar a desenvolver o local onde está inserida e de tornar os indivíduos mais autônomos", diz.

"O papel da universidade também é o de ajudar a desenvolver o local onde está inserida e de tornar os indivíduos mais autônomos."

Janaina Zito Losada, pró-reitora de gestão acadêmica da Universidade Federal do Sul da Bahia

Janaina afirma que o diálogo entre os educadores é fundamental para a construção desse novo currículo. As mudanças não são simples e passam por um processo longo de reconstrução.

É o que ocorre agora no Centro Paula Souza onde as Etecs e Fatecs, mesmo sob a mesma estrutura, não atuavam de maneira articulada. Tanto que, no vestibular realizado na Fatec neste ano, apenas 7% dos alunos eram egressos das Etecs. Essa realidade começa a mudar por meio do Itinerário Contínuo. "A parceria com o Itaú Educação e Trabalho facilitou a construção desse currículo em conjunto", diz Barros.

O Itaú Educação e Trabalho, uma das vertentes da Fundação Itaú para Educação e Cultura, trabalha em parceria com secretarias de Educação de vários estados para elaborar projetos que garantam ao estudante um ensino de qualidade e facilitem sua inserção no mundo do trabalho. Para isso, apoia iniciativas que articulem o ensino profissional e tecnológico ao ensino médio regular.

"As parcerias com o Centro Paula Souza e com a Federal do Sul da Bahia concretizam o que já sabemos: que a formação profissional é contínua e multifacetada. Estas experiências têm um grande valor por serem pioneiras nessa articulação. O ensino superior dialogando com a educação profissional e tecnológica beneficia a formação do aluno, mostra que é possível elaborar currículos que valorizem a formação profissional contínua e, principalmente, anuncia ao jovem uma perspectiva que ainda não existia: a de que uma continuidade possível do ensino técnico é a universidade. No Brasil, temos que considerar que a universidade vale muito. Quem tem um diploma universitário tem mais prestígio, uma formação mais abrangente e ganha, em média, cinco vezes mais do que quem não tem", afirma Ana Inoue, superintendente de Educação e Trabalho da Fundação Itaú para Educação e Cultura. Esse aluno poderá também dar sequência à sua formação por meio de outros cursos de formação continuada que respondam ao seu interesse e façam sentido no mundo do trabalho.

Ana afirma que as universidades têm se mostrado interessadas no projeto Itinerário Contínuo por reconhecerem que não validar os conteúdos já aprendidos pelo aluno da EPT é um desperdício de tempo e de recursos. Ela cita o caso, por exemplo, do aluno de um curso técnico em edificações que é aprovado em uma faculdade de engenharia. "O aluno que se formou como técnico em edificações já pode assinar projetos de até 80 metros quadrados. Mas, ao entrar em uma faculdade de engenharia, ele é tratado como alguém que nunca viu um projeto. Ele terá muito a aprender, mas, por outro lado, já sabe muitas coisas. Certamente já sabe fazer projetos de até 80 metros quadrados, mas isso não é reconhecido pela universidade. Ele será submetido a aulas para supostamente aprender algo que ele já sabe. É um desperdício não reconhecer esses saberes", afirma. Ela destaca também a importância das universidades se envolverem com esta iniciativa, inaugurando uma nova perspectiva de formação contínua para os jovens.

"Esse aluno (técnico em edificações) já pode assinar projetos de até 80 metros quadrados. Mas, ao entrar em uma faculdade de engenharia, ele é tratado como alguém que nunca viu um projeto. Ele já sabe muitas coisas, mas isso não é reconhecido pela universidade. É um desperdício não reconhecer esses saberes."

Ana Inoue, superintendente de Educação e Trabalho da Fundação Itaú para Educação e Cultura

Daniel Barros concorda e afirma que a meta em São Paulo é ampliar o projeto para outros cursos e universidades, como a USP, Unesp, Unicamp e até a rede privada.