Uma constituição cidadã para cidadãos sem constituição

Anne Wilians*

O documento mais importante da nossa democracia é a Constituição. Elaborada em 1988, ela é resultado de um amplo processo de discussões para a redemocratização da nossa sociedade e do país, e encerrou definitivamente um período de censura à imprensa, restrições aos direitos políticos e perseguição aos opositores do regime militar.​

Após a eleição à Presidência da República da chapa Tancredo Neves-José Sarney, se deu início a um intenso debate democrático, que envolveu organizações populares e o engajamento de milhões de brasileiros até a aprovação do texto final da nossa Carta Magna, que foi inovadora ao elencar inúmeros direitos fundamentais e torná-los cláusulas pétreas.

Não sem motivos, a Constituição de 88 passou a ser chamada de Constituição Cidadã. Além de afirmar a legitimidade dos direitos civis e políticos no Brasil, ela trouxe importantes avanços para a garantia de direitos essenciais, como saúde, educação, moradia, proteção à maternidade e à infância, entre outros.

A Constituição assegurou de forma muito clara e abrangente direitos fundamentais para a existência e uma vida mais digna aos brasileiros. Além, claro, de limitar e controlar os abusos do poder do Estado.

Anne Wilians, advogada, fundadora e presidente do INW
Anne Wilians, advogada, fundadora e presidente do INW - Fernanda Bozza

A principal função desses direitos é atender às necessidades humanas, podendo se modificar com a evolução e transformação da sociedade. Porém, a efetivação desses direitos fundamentais surgiu antes da criação de condições adequadas ao seu avanço social, dando à recepção jurídica, de certa maneira, um tom assistencialista. Ainda assim, não se justifica o índice de 64% da população com pelo menos um desses direitos violados, segundo dados do IBGE.

Mesmo que essa pesquisa traga dados de 2018, ela possivelmente reflete um cenário até melhor do que o cenário atual, fortemente impactado pela pandemia global de Covid-19, onde mais pessoas cruzaram a linha da pobreza.

Isso se comprova com a pesquisa do FGV Social, de 2021, que revela que 16,1% da população está na linha da pobreza, significando um aumento de quase 6% em relação a 2019.

Dentro do cenário de contraste entre previsão legal e a realidade de direitos, temos uma constatação ainda pior: 41% dos brasileiros acreditam que tanto faz viver em uma democracia ou não, segundo o Latinobarómetro.

A indiferença reflete a ignorância nos conceitos da base da democracia e de seus benefícios para a sociedade, mesmo depois de 21 anos de ditadura. Essa postura também pode estar ligada à distância que há entre uma grande camada da população e o acesso aos seus direitos fundamentais.

E isso é preocupante.

Em pleno ano de eleições, precisamos de cidadãos que conheçam a Constituição Federal, que conheçam seus direitos sociais, que reconheçam quando eles são violados e que saibam cobrar seus candidatos e aqueles que chegaram ao poder. Fomentar e alimentar a ignorância é favorecer os maus políticos, que se apoiam na escassez de recursos para justificar uma má gestão, por exemplo.

Como força-tarefa, temos visto inúmeros organismos do terceiro setor e outros movimentos surgirem com o objetivo de formar cidadãos mais conscientes. E é muito importante estarmos na ponta para que a transformação e a conscientização aconteçam em todas as bases da sociedade.

Falo em todas as bases porque ainda percebemos que, independentemente da posição que o indivíduo ocupa nesta pirâmide, isso não precede uma certeza de conhecimento de cidadania.

Os direitos à vida, à liberdade, à igualdade são a base dos direitos fundamentais da Constituição Federal. Mas a efetivação destes direitos não acaba simplesmente com a sua recepção jurídica.

A sociedade ainda precisa se formar politicamente para tomar posse de seus direitos e fazer valer as transformações previstas em nossa Constituição, com uma postura mais crítica em relação à inércia do Estado e com cobranças mais assertivas na formulação de políticas que respeitem o princípio da igualdade e da justiça social, em prol do desenvolvimento.

Em resumo, a sociedade e o Estado devem planejar e efetivar esses direitos com soluções possíveis para que os princípios de nossa Constituição se concretizem, de fato, principalmente para aqueles cidadãos sem constituição, que nem sequer conseguem se conscientizar de seus próprios direitos e assegurar para si mesmos uma vida mais digna, infelizmente.

É preciso conscientização, informação, educação e participação pública para alcançarmos, realmente, uma sociedade organizada.

* Advogada, fundadora e presidente do INW-Instituto Nelson Wilians