Não há dúvidas de que nossos bisavós - ou tataravós - conheceram no início do século passado as Alpargatas Roda, se é que não as usaram. Nos anos 1980, elas voltaram ao gosto dos jovens. Naquela época também já eram populares os jeans USTop, “seu jeito de viver”, e, desde os anos 50, ir à escola de Conga ou Bamba era tão comum quanto cobrir as camas com colchas Madrigal e ver um agricultor calçar as botas Sete Léguas. Meninos hoje na meia-idade certamente batiam bola com os pés em um par de Kichute, assim como brasileiros de qualquer idade se encantam há mais de 60 anos com as Havaianas.
Poucas empresas centenárias conseguiram se mostrar tão presentes em cada geração de brasileiros como a Alpargatas. A empresa, avaliada atualmente em R$ 22 bilhões, agora conquista gerações em todo o mundo.
Fundada em 1907 pelo escocês Robert Fraser, a companhia que atravessou o século criando marcas e produtos tão populares, como as legítimas Havaianas, deu uma guinada em 2017 quando Itaúsa, Brasil Warrant e Cambuhy Investimentos, a gestora do patrimônio da família Moreira Salles, assumiu seu controle. Desde 2019, essa guinada é conduzida por uma diretoria renovada e comandada pelo CEO Roberto Funari, executivo com mais de 30 anos de carreira em empresas de bens de consumo, 18 deles em mercados internacionais.
Com a experiência de quem esteve à frente de estratégias de globalização da multinacional Reckitt Benckiser, Funari comanda a Alpargatas baseado em quatro pilares estratégicos: inovação, sustentabilidade, digitalização e, claro, globalização (leia entrevista ao lado). A companhia decidiu focar as suas marcas ícones, desejadas e hiperconectadas, para um público cada vez mais exigente e consciente.
Em setembro do ano passado, a empresa encerrou um ciclo de desinvestimento com a venda da licença da marca de tênis Mizuno. Topper, Rainha e Sete Léguas também passaram a outras empresas, assim como uma planta têxtil na Argentina.
As Havaianas, produto mais marcante na vida dos brasileiros desde 1962, e a Osklen são agora o carro-chefe da empresa. Levam a assinatura de designers e grifes famosas e se tornaram objeto do desejo no exterior.
“A empresa se desfez de tudo o que não estava alinhado à sua nova estratégia de focar as marcas ícones de lifestyle e a expansão das Havaianas”, afirma Funari. “Desde a adoção dessas mudanças, o valor da empresa multiplicou-se por quatro, sendo uma das companhias que mais se valorizaram no país. E estamos só no começo.”
O QUE FAZ A ALPARGATAS
- HAVAIANAS - Chinelos populares de borracha lançados em 1962 e inspirados nas sandálias típicas japonesas. A partir dos anos 1990, com a demanda externa, passam a ser trabalhados em novas versões e em coleções assinadas por estilistas e designers
- OSKLEN - Marca de moda casual urbana criada em 1989 e adquirida pela Alpargatas em 2010. Atualmente, é o maior laboratório de desenvolvimento de matérias-primas sustentáveis do Brasil
- INSTITUTO ALPARGATAS - Braço social voltado para a educação que beneficia 1,4 milhão de estudantes nas comunidades onde a Alpargatas está presente. Em 2020, atuou também no apoio à saúde e às comunidades vulneráveis do país em ações que totalizaram R$ 70 milhões
“SEREMOS CADA VEZ MAIS UMA EMPRESA GLOBAL”
Alpargatas amplia vendas, registra resultados positivos durante a crise de 2020 e prepara salto no mercado internacional
Fundada em 1907 para fabricar um calçado de lona usado por operários e trabalhadores rurais que lhe deu o nome, a dona das marcas Havaianas e Osklen tornou-se uma das raras empresas de bens de consumo a registrar indicadores positivos ao final de um ano de pandemia e de crise econômica, como foi 2020. Focada nessas duas marcas fortes e icônicas, a Alpargatas prepara agora um salto mais ousado na arena internacional, a expansão de seu portfólio de produtos e a ampliação das vendas online.
“A Alpargatas será cada vez mais uma empresa global”, diz Roberto Funari, CEO da empresa controlada pela Cambuhy Investimentos, Brasil Warrant e Grupo Itaúsa. “O mercado internacional será nosso grande vetor de crescimento.”
Como se explicam os resultados positivos da Alpargatas em 2020?
O mercado de calçados caiu 22% no Brasil e 20% no mundo no ano passado. Havaianas cresceu 6%, nós fomos na contramão do mercado. Vendemos 230 milhões de pares de Havaianas. Isso se deve à força da marca. Nesses 114 anos de história, a Alpargatas teve como diferencial a construção de marcas fortes. Estamos agora transformando a Alpargatas em uma powerhouse de marcas hiperconectadas e desejadas, como a Havaianas e a Osklen.
Havaianas sempre foi uma marca que representa liberdade, verão, espírito jovem. Na pandemia vimos que ela também é a marca de ficar em casa. As pessoas têm memória afetiva muito boa das Havaianas, e o produto cabe muito bem no que estamos vivendo: é fácil de lavar e secar, relativamente barato e confortável. Depois, trouxemos produtos novos, como as meias adaptadas para usar com os chinelos, como as japonesas.
A Alpargatas está entre as raras empresas que sobreviveram ao longo de um século. Qual a fórmula?
A empresa sempre teve fundamentos fortes. A força de suas marcas está no primeiro pilar. No segundo, sua orientação para o longo prazo, sempre em conexão com a sociedade, o que nos ajuda a tomar decisões eficazes. O terceiro pilar é a cultura da casa. Nossa comunidade de colaboradores traz um coração de dono muito forte. Em momentos de crise, esse tripé nos permite superar os desafios.
Essa ousadia de mirar o longo prazo é histórica?
Sim. A Alpargatas é uma empresa que busca se conectar com as transformações da sociedade. Lá atrás, na década de 1920, a Alpargatas uma das primeiras empresas a contratar mulheres para a linha de produção no Brasil. Hoje a empresa é a mais antiga listada na Bolsa de Valores, abrimos capital em 1910. Concedemos benefícios trabalhistas antes mesmo da adoção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
De chinelo popular, “as legítimas”, a Havaianas se tornou marca de moda nos anos 2000. Como se equilibra nas duas facetas?
A Havaianas chegou a fazer parte da cesta básica dos brasileiros nos anos 1980. É uma marca inclusiva, querida e usada por pessoas de todas as classes sociais. Mas tornou-se também um ícone de moda e de cultura. É a única marca do segmento de moda e calçados que consegue ser inclusiva e, ao mesmo tempo, um ícone de moda. Por isso, é a maior marca global de calçados abertos.
O senhor mencionou a geração de empregos em 2020. Quantos foram criados?
Criamos mais de 1.000 postos de trabalhos e não tivemos interrupções na produção. Seguimos as normas ditadas pelas autoridades de saúde, demos todo o apoio de saúde aos nossos funcionários.
O que se pode esperar da Alpargatas, senão para os próximos 100 anos, pelo menos para um futuro próximo?
Vamos acelerar o crescimento da marca Havaianas em quatro pilares estratégicos. O primeiro é a expansão global. A marca está presente em mais de 100 países. O segundo pilar é a aceleração dos canais de venda online. No exterior, eles já representam mais de 40% dos negócios da empresa.
O terceiro pilar é a expansão do portfólio, para ir além de chinelos. Crescemos muito no ano passado com os calçados abertos femininos - sandálias e rasteirinhas - e estamos criando modelos para outras ocasiões de uso, como os ambientes urbanos e de trabalho. Também olhamos para as linhas de acessórios e vestuários porque a marca Havaianas é, essencialmente, de lifestyle (estilo de vida). O quarto pilar é a incorporação de materiais e soluções sustentáveis nos nossos produtos.
Quais as tendências que mais orientam os negócios da Alpargatas nesta década?
As três maiores são a casualização, a conexão crescente das pessoas às marcas pelos canais digitais e o aumento de consumidores conscientes.
A sustentabilidade tornou-se premissa para a sobrevivência das empresas neste século. O que planeja a Alpargatas neste sentido?
A Osklen já é pioneira em sustentabilidade desde sua fundação pelo Oskar Metsavaht, que é nosso sócio e continua como diretor criativo da marca até hoje. Traz pioneirismo em várias soluções e materiais e está muito bem posicionada como sustentável. No ano passado, a Osklen lançou a Amazon Guardians, uma linha de lifestyle liderada por sneakers que são os mais sustentáveis em nível global.
Havaianas lançou, em dezembro de 2020, um projeto piloto de Logística Reversa no Brasil. Três lojas e cinco condomínios receberam urnas de descarte adequado de Havaianas usadas, que em parceria com a Trash In, startup especialista em economia circular, destinarão os produtos coletados para a produção de novos itens, como pisos e pneus, assim como para testes de soluções diversas para nossa cadeia produtiva. O piloto será expandido para mais localidades durante a primeira metade de 2021 e também será executado em pelo menos mais um país. Desta forma, poderemos coletar dados para começar a segunda fase da jornada de economia circular em Havaianas.
A linha Soul Collection, de Havaianas (alpargatas e mules) tem 62% da composição dos produtos fabricados com materiais e tecidos reciclados ou naturais, ampliará para 80% essa proporção na coleção 21/22, que começa a chegar às lojas no Brasil no segundo trimestre do ano. As linhas de vestuário, acessórios e flip flops também terão novas opções de produtos com materiais sustentáveis nas próximas coleções.
A Alpargatas será mais exportadora do que produtora para o mercado interno?
O crescimento no mercado internacional será nosso grande vetor de crescimento. Até porque, fora do Brasil, temos uma participação menor no mercado e, portanto, potencial enorme. No Brasil, onde a marca está consolidada, também há oportunidades, como crescimento de vendas no Sul e no Sudeste e na linha masculina.
Por mais que estejamos presentes em 300.000 pontos de venda no país, ainda temos capacidade de expandir nossa distribuição em canais segmentados. Em 2020, começamos a vender chinelos em farmácias e ampliamos nossa presença em lojas de departamento. Outro potencial no país vem da expansão do nosso portfólio de produtos. Mas a Alpargatas será cada vez mais uma empresa global.