Depois de examinar 400 tumores malignos e outros 100 benignos sob as lentes do microscópio, o anatomista e cirurgião francês Armand Louis Velpeau (1796-1867) não conseguiu determinar a etiologia do câncer. Mas anteviu o que a ciência demoraria cerca de um século para comprovar. Ele escreveu sobre seus achados: "A chamada célula cancerosa é apenas um produto secundário e não o elemento essencial da doença. Abaixo dela, devem existir elementos mais íntimos que precisariam ser descobertos para que se possa definir a natureza do câncer". (1)
Os tais "elementos mais íntimos", intuídos por Velpeau, são as bases genéticas dos tumores malignos. O entendimento do câncer como uma doença do genoma só seria possível com os avanços nos conhecimentos sobre biologia molecular, a partir da descoberta, em 1953, da dupla hélice do DNA, por Francis Crick (1916-2004) e James Watson. (2)
A compreensão de como os genes controlam os processos químicos dentro das células, aliada ao desenvolvimento de tecnologias cada vez mais potentes de identificação e análise das mutações genômicas, permitem hoje determinar a evolução de um tumor e seu risco de metástase bem como antecipar a resposta da doença a uma determinada terapia, diz Marcelo Cruz, oncologista do Hospital Sírio-Libanês e pesquisador pela Northwestern University, em Chicago. É uma nova era no manejo do câncer –a da oncologia de precisão.
Até recentemente, os tumores eram classificados em uma centena de tipos, em função de seus aspectos celulares. Atualmente, são divididos em subtipos, a partir de suas diferenças moleculares. O oncologista Rodrigo Munhoz, coordenador do programa em residência médica do Sírio-Libanês, usa o câncer de pulmão como exemplo. Antes, a doença era classificada basicamente em adenocarcinoma e carcinoma espinocelular. "Mas, passou a se entender que, dentro de um mesmo grupo, tumores, com características semelhantes na microscopia, tinham assinaturas genéticas distintas, com uma evolução completamente diferente", explica Munhoz. E isso vale para vários cânceres –mama, próstata, cólon, vias biliares, útero, hematológicos, melanoma, sarcoma, entre outros.
Há dois tipos de investigação genética. As mais simples buscam alterações específicas no genoma do paciente, para avaliação de risco. Entre 5% e 10% das neoplasias são hereditárias, com origem nas chamadas mutações germinativas. (3) Ou seja, o paciente nasce com o defeito genômico, presente em todas as células do organismo. Muitas mulheres com mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 optam pela retirada radical das mamas e dos ovários como medida profilática contra o câncer. Foi o que fez a atriz e cineasta americana Angelina Jolie, em 2013, depois de perder a mãe e uma tia para a doença. (4) "Esses testes acabam beneficiando outras pessoas da família do paciente", diz Cruz.
No monitoramento dos cânceres somáticos, ferramentas ultramodernas traçam um retrato minucioso do genoma do tumor, tanto para definir como para acompanhar o tratamento. Os painéis genômicos por sequenciamento de nova geração (NGS, na sigla em inglês), avaliam centenas de genes do paciente em busca das alterações no DNA e no RNA, associadas à gênese da doença daquela pessoa. Desenvolvido pelo Sírio-Libanês, o HSL 500, por exemplo, consegue determinar de uma só vez mutações em 508 genes. É a oncologia rumo ao tratamento personalizado.
NOVOS MEDICAMENTOS
Na virada dos anos 1990 para 2000, começaram a ser lançados os primeiros medicamentos baseados nos novos conhecimentos sobre a etiologia genética do câncer. Desenhadas para agir nos genes e/ou proteínas envolvidas na proliferação das células tumorais, as terapias alvo tendem a ser mais eficazes e, ao preservar as células saudáveis, costumam oferecer menos efeitos colaterais, em comparação às terapêuticas tradicionais, em especial, a quimioterapia.
Com isso, tumores tidos como incontroláveis passaram a ter tratamento. "Em algumas situações, nós podemos até almejar a cura", diz o oncologista Denis Jardim, coordenador da Pesquisa Clínica da Oncologia do Sírio-Libanês e diretor científico do Lacog GU (Latin American Oncology Group Genitourinary).
O prognóstico de pacientes portadores da leucemia mieloide crônica (LMC) sempre foi pouco animador. Em 2001, no entanto, o medicamento imatinibe revolucionou o tratamento da doença. Tido como a "bala mágica" contra a LMC, o remédio inibe a ação da proteína produzida pelo gene híbrido BCR-ABL, presente em 95% dos doentes. (5) Segundo Jardim, a sobrevida dos pacientes passou de cerca de um ano para até uma década. "Muitas dessas drogas são bem toleradas a ponto de o paciente tomar por anos e se manter funcional, trabalhando, viajando com a família", completa.
Alguns tumores, porém, ainda não dispõem de terapias alvo. Em pacientes com câncer de pâncreas, por exemplo, é raro encontrar alterações que indiquem tratamentos específicos. As investigações genéticas são para entender a doença e direcionar o tratamento. "Há casos de maior ou menor indicação da pesquisa molecular, a depender da disponibilidade de terapias", afirma Jardim.
Como lembra o oncologista Cruz, as diretrizes americanas e europeias só recomendam os testes genéticos no caso dos tumores para os quais existe terapia alvo. Mantido o ritmo atual das inovações, não demora muito o câncer, com todos os seus tipos e subtipos, ser domado.
Referências:
(1) "A brief history of câncer: Age-old milestones underlying our current knowledge database"
(https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ijc.29134)
(2) "The discovery of the double Helix, 1951—1953"
(https://profiles.nlm.nih.gov/spotlight/sc/feature/doublehelix)
(3) "Hereditary Cancer Predisposition"
(https://ascopubs.org/doi/10.1200/jco.2005.10.042)
(4) "My medical choice"
(https://www.nytimes.com/2013/05/14/opinion/my-medical-choice.html)
(5) "Imatinib: a breakthrough of targeted therapy in câncer"
O câncer em uma gota de sangue
Na replicação descontrolada do câncer, algumas células tumorais se rompem e liberam pedaços de DNA na circulação. A análise desse material genético, encontrado nos fluidos do organismo, em especial o sangue, é a base da biópsia líquida, uma ferramenta para o acompanhamento da eficácia do tratamento de um tumor e seu risco de recidiva.
A esperança é a de que no futuro o método seja usado para a detecção do câncer em estágios iniciais. "A quantidade de DNA presente na circulação é proporcional ao tamanho da doença", diz o oncologista Denis Jardim, do Hospital Sírio-Libanês. Ou seja, a acurácia do exame é maior quanto mais a doença estiver disseminada pelo organismo. "A tecnologia atual ainda não é sensível o bastante para o diagnóstico precoce", completa Jardim. Os riscos de resultados falsos negativos ainda são grandes.
Pesquisadores dos principais centros de estudos do câncer no mundo têm se dedicado ao refinamento da tecnologia. Segundo o oncologista Marcelo Cruz, também do Sírio-Libanês, trabalhos recentes realizados nos Estados Unidos indicam que a biópsia líquida pode vir a substituir a colonoscopia na detecção dos tumores de cólon. Outros estudos, esses conduzidos por especialistas ingleses, indicam que o método pode vir a ser usado como complemento aos exames de imagem das mamas.
No estágio atual, o método pode ser uma alternativa nos casos de tumores de difícil acesso, que exigem biópsias invasivas, como os de pulmão, afirma Cruz.