Inseguras em seus deslocamentos, mulheres criam estratégias para escapar do assédio

Pesquisa aponta que três dos cinco maiores medos das mulheres nas ruas são a locomoção à noite (75%), passar por locais desconhecidos (60%) e esperar ônibus no ponto (51%); uso de carros por aplicativo no trecho final da jornada é uma das alternativas de segurança

Mulher caminha em rua escura à noite

Inseguras em seus deslocamentos, mulheres criam estratégias para escapar do assédio Pixabay

Desde a adolescência, a estudante de design de som Renata Miranda, 31, sabia que, se queria alçar voos mais altos na vida, teria de pegar o trem em Poá, cidade de 118 mil habitantes a 35 km do centro de São Paulo, para cursar uma boa escola no ensino médio e fazer faculdade.

E foi assim, de trem em trem, mais metrô e ônibus, que ela chegou ao curso superior. Arrumou emprego na capital, mas continuava morando em Poá e, por dez anos, continuou a utilizar o transporte coletivo. Nesse período, Renata conta que foi assaltada mais de uma vez, mas o pior e mais traumático evento foi ter sido vítima de abuso sexual.

Aconteceu quando ela trabalhava na avenida Paulista e de lá tomava metrô e trem para chegar em casa. "Era verão, eu estava na estação da Luz no horário de pico e era algo indescritível de cheio. Na hora de entrar no trem, um homem atrás de mim colocou a mão por dentro do meu vestido", lembra. "Foi tão rápido! Tenho até a impressão de ter visto a pessoa, mas na hora que entrou todo mundo, o sujeito desapareceu na multidão. Senti-me totalmente violada."

Renata conta que teve apoio dos outros passageiros do trem e da CPTM. Os seguranças a escoltaram e saíram em busca do abusador. No entanto, não conseguiram localizá-lo.

Amedrontada, Renata conta que criou estratégias para evitar um novo assédio. Apesar de Poá ser pequena e sua casa ficar a cinco minutos da estação de trem, passou, por exemplo, a usar carro de aplicativo para concluir a volta para casa.

Até hoje, anos depois, Renata ainda se diz traumatizada, mesmo vivendo nos Estados Unidos. "Moro em Savannah, no estado da Georgia, desde 2017. Como é muito quente, é comum a gente ficar na varanda. Um dia, vi um homem caminhando na minha rua. Ele atravessou bem na frente de casa e meu coração disparou por uns cinco minutos. No fim, ele seguiu o caminho dele, mas essa é minha vida..."

Atualmente, quando vem ao Brasil, Renata evita o transporte coletivo e, quando precisa ir de Poá a São Paulo, procura juntar-se a amigos e dividir um carro de aplicativo da porta de casa até seu destino.

Renata Miranda, 31, vítima de assédio em trem da CPTM em São Paulo
Renata Miranda, 31, vítima de assédio em trem da CPTM em São Paulo - Arquivo Pessoal

Para a especialista em políticas públicas de gênero e mobilidade urbana Daniely Votto, a história de Renata é um exemplo claro de como a mobilidade urbana não foi pensada para as mulheres. "O que aconteceu com ela no trem em São Paulo também acontece todos os dias no Brasil inteiro, pois 97% das mulheres maiores de 18 anos já relataram algum tipo de abuso, de violência de gênero, no transporte público ou privado, segundo pesquisa de 2019 dos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão", explica.

Essa falta de segurança nos deslocamentos diários dificulta a vida das mulheres e as obriga, assim como Renata, a criar estratégias para evitar o assédio. "As mulheres preferem fazer caminhos mais longos, optando por ruas mais movimentadas e evitando lugares desertos ou pouco iluminados. Eu mesma, que moro em Porto Alegre, costumo evitar ruas muito arborizadas à noite, pois a iluminação pública é voltada para a pista, não para a calçada", diz Daniely.

Outra estratégia é pedir o carro de aplicativo para completar o final do trajeto para casa. Pesquisa da 99, que ouviu mais de mil mulheres, apontou que a maioria considera carros por aplicativo e táxis mais seguros que ônibus e metrô. A pesquisa apontou ainda que três dos cinco maiores medos das mulheres nas ruas são a locomoção à noite (75%), passar por locais desconhecidos (60%) e esperar ônibus no ponto (51%).

Soluções como os vagões só para mulheres não são vistas de forma totalmente positiva pela especialista. "Pode ser bom durante um momento de pico de casos de assédio, mas, além de criar segregação, muitos homens podem interpretar que a mulher que acaba entrando em outro vagão está dando uma licença para o abuso", diz.

A 99 defende o respeito às mulheres e investe no combate ao assédio contra suas usuárias contando com ferramentas de segurança e ações de conscientização. Entre suas iniciativas, o Guia da Comunidade 99, que traz comportamentos esperados, dicas práticas sobre o que fazer e o que não fazer, e o serviço 99Mulher, pelo qual motoristas mulheres podem optar por transportar apenas pessoas do mesmo gênero.