Especialistas apontam urgência na regulação do cigarro eletrônico

Proibição não impede o uso disseminado no Brasil, deixa consumidor no escuro sobre riscos do produto ilegal e não possibilita alternativas para redução de danos; Anvisa discute assunto nesta sexta-feira

Os cigarros eletrônicos são consumidos no Brasil por mais de 2,2 milhões de adultos, apesar de a produção e a comercialização serem proibidas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) desde 2009. São produtos fruto do contrabando, sem que as pessoas saibam que substâncias têm nele, sem controle de procedência e sem que paguem tributos. Com isso, os brasileiros não têm acesso a esses dispositivos legais, como fazem moradores de mais de 80 países no mundo, para tentar abandonar o tabagismo ou como redução de riscos, uma vez que pesquisas mostram que o cigarro eletrônico, apesar de não ser isento de riscos, é até 95% menos nocivo que o convencional.

A Anvisa realiza nesta sexta (dia 1º de dezembro) uma reunião de seu colegiado para discutir a proposta de uma Consulta Pública para revisar a RDC 46 (2009), que proíbe a fabricação, comercialização, importação e propaganda dos cigarros eletrônicos no Brasil.

"Hoje, acho um grande absurdo alguém defender a manutenção da proibição. Quando falamos em boas práticas regulatórias, se existe uma regra que não cumpre seu papel, ela tem que ser revista", afirmou Alessandra Bastos, ex-diretora da Anvisa, farmacêutica e consultora da BAT Brasil, durante debate realizado pela BAT e pelo Estúdio Folha, ateliê de conteúdo patrocinado da Folha de S.Paulo.

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Alessandra Bastos, farmacêutica, exdiretora da Anvisa e, atualmente, consultora científica da BAT Brasil - s Rogério Cassimiro/Estúdio Folha

Além dela, estiveram no painel que discutiu a urgência da regulamentação, Carolina Fidalgo, advogada especialista em regulação sanitária, e Miguel Okumura, consumidor que se tornou ativista e criou o Vaporacast, podcast que dissemina informações sobre cigarro eletrônico.

Acho um grande absurdo alguém defender a manutenção da proibição. Quando falamos em boas práticas regulatórias, se existe uma regra que não cumpre seu papel, ela tem que ser revista

Alessandra Bastos

Ex-diretora da Anvisa, farmacêutica, consultora da BAT Brasil

Outro painel, composto por um farmacêutico, um oncologista e uma psicoterapeuta, discutiu aspectos de saúde pública e redução de danos (leia mais nesta página). De forma unânime, os especialistas afirmaram que a adoção de normas para os dispositivos no Brasil é urgente e que só com ela será possível proteger e informar o consumidor de forma adequada, controlar a comercialização, principalmente para menores de 18 anos, e coibir o contrabando.

Em julho do ano passado, dentro da análise do processo de impacto regulatório do cigarro eletrônico, a Anvisa produziu um relatório afirmando ser inviável a autorização dos vapes.

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Carolina Fidalgo, advogada especializada em regulação e professora de direito constitucional, administrativo, regulatório e da concorrência - s Rogério Cassimiro/Estúdio Folha

Com isso, o estudo da matéria foi interrompido antes de chegar à fase final. O texto foi aprovado com ressalvas, abrindo a possibilidade de a diretoria pedir o aprofundamento da matéria antes de definir sobre o caso.

"A Anvisa já foi capaz de impactar de forma positiva o cenário relativo à utilização de produtos de tabaco exatamente porque implementou regras. O mesmo pode ser feito agora", afirmou Alessandra.

Já passaram 14 anos. Os contextos social, científico e regulatório mundiais são outros. Não estou dizendo que a Anvisa deva seguir outros países, a nossa crítica é que não dá pra dizer que a regulamentação é inviável

Carolina Fidalgo

Advogada especializada em regulação e professora de direito constitucional, administrativo, regulatório e da concorrência

A advogada Carolina Fidalgo lembrou que o cigarro eletrônico foi proibido em 2009 com base no princípio da precaução, dispositivo usado quando o estado ainda não conta com evidências suficientes sobre os malefícios de determinada tecnologia ou prática nova.

Desde então, porém, os estudos sobre cigarros eletrônicos ao redor do mundo avançaram e diversas agências reguladoras parceiras da Anvisa no ICH (Conselho Internacional sobre Harmonização de Requisitos Técnicos em Produtos Farmacêuticos para Uso Humano), já criaram suas normas para o produto.

"Já passaram 14 anos. Os contextos social, científico e regulatório mundiais são outros. Não estou dizendo que a Anvisa deva seguir outros países, a nossa crítica é que não dá pra dizer que a regulamentação é inviável, porque não é", afirmou Carolina.

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Miguel Okumura, consumidor de cigarro eletrônico e fundador do projeto Vaporacast - s Rogério Cassimiro/Estúdio Folha

Com a proibição, os consumidores também têm encontrado dificuldade para se informar sobre a matéria. Miguel Okumura conheceu o dispositivo eletrônico em 2016 após dois anos de frustração tentando abandonar o cigarro convencional e notou que ele poderia ser uma ferramenta importante para ajudá-lo a cessar o tabagismo.

Okumura iniciou, então, uma pesquisa por conta própria até reunir dados suficientes para comparar os riscos do vape com os do cigarro por combustão.

"Encontrei diversas pesquisas feitas em outros países que mostravam a possibilidade do uso do vape para redução de danos. No Brasil, não temos informação. Como consumidor, me sinto frustrado. Sinto que a Anvisa e o governo deveriam me informar porque eu consigo achar o produto em qualquer lugar", disse.

Como consumidor, me sinto frustrado. Sinto que a Anvisa e o governo deveriam me informar porque eu consigo achar o produto em qualquer lugar

Miguel Okumura

Consumidor de cigarro eletrônico e fundador do projeto Vaporacast

Alguns países com produção científica e regulamentações sanitárias que são exemplo internacional, como Canadá, Inglaterra e Nova Zelândia, já reconhecem os cigarros eletrônicos como ferramenta para redução do tabagismo.

Os debatedores frisaram que o fato de o cigarro eletrônico não ser inócuo não é motivo para a proibição. O cenário todo deve ser levado em conta, uma vez que o produto já está disseminado, e o consumidor, no escuro.

"A Anvisa trabalha para o cidadão. Não estamos julgando se o produto faz bem ou mal, o consumidor tem direito a um produto com vigilância sanitária adequada", disse Alessandra.

Carolina Fidalgo completou citando o exemplo da Inglaterra, que criou uma consulta pública para tratar do tema. O país já reconhece o cigarro eletrônico como ferramenta de redução de danos do tabagismo e, ao mesmo tempo, discute estratégias para proteger crianças e adolescentes.

"A experiência inglesa considera o problema dos fumantes e a vontade de quem quer consumir ao mesmo tempo que leva em conta os efeitos colaterais disso. Aí são adotados a proibição para menores, as informações na embalagem, o controle na venda e a criação de mecanismos para dificultar abertura do dispositivo por crianças", afirmou.

"Já no Brasil, você compra cigarro eletrônico na banca de jornal, na praia, no show, no aplicativo… Se perguntar na rua, a maioria das pessoas nem sabe que é proibido. A regulamentação de forma adequada envolve a divulgação dos riscos, criando instrumentos de conscientização e barreiras para que novos consumidores usem. É assim que vai proteger as crianças e os adolescentes", completou.

FALTA DE INFORMAÇÃO

Profissionais da área médica ressaltam riscos da proibição

A proibição dos cigarros eletrônicos não só expõe os consumidores brasileiros a riscos de saúde como também não permite o avanço do debate sobre seu uso para redução de danos e das pesquisas no Brasil, apontaram especialistas em saúde. "Ninguém é ingênuo de achar que o cigarro eletrônico não faz mal. Mas ele pode ser uma forma menos nociva de se entregar nicotina ao consumidor de tabaco, que provoca grande risco por meio da combustão no cigarro convencional", afirmou o médico oncologista Edgard Mesquita Rodrigues Lima.

As pesquisas sobre o uso de dispositivos eletrônicos para redução dos danos do tabaco já avançaram em diversos países. Alguns governos, como os da Suécia e da Inglaterra, já recomendam seu uso para auxiliar no combate ao tabagismo. No Brasil, no entanto, não há estudos sobre o dispositivo porque ele é proibido desde 2009.

Ninguém é ingênuo de achar que o cigarro eletrônico não faz mal. Mas ele pode ser uma forma menos nociva de se entregar nicotina ao consumidor de tabaco

Edgard Mesquita Rodrigues Lima

cirurgião oncológico e Membro Titular da SBCO (Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica)

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Monica Gorgulho, psicoterapeuta com base psicanalítica, ex- presidente da Rede Brasileira de Redução de Danos - s Rogério Cassimiro/Estúdio Folha

Uma revisão de mais de 400 pesquisas científicas conduzida pelo King’s College London, da Inglaterra, e divulgada pelo Ministério da Saúde inglês, por exemplo, mostrou que os vaporizadores são 95% menos prejudiciais que o cigarro comum.

"Os resultados dependem do modelo, da regulamentação e do produto. Temos acesso a pesquisas que mostram ser possível reduzir a quantidade de substâncias tóxicas oferecidas ao consumidor e, consequentemente, reduzir o número de óbitos por câncer nesses países. Pode ser que não funcione da mesma maneira no Brasil, mas não podemos fechar os olhos, negar o que está acontecendo e não ter um debate sadio e maduro sobre isso no nosso país", afirmou Rodrigues Lima.

Monica Gorgulho, psicoterapeuta especialista em redução de danos que trabalha com consumidores de cigarro convencional, explicou que o vape pode ser uma importante ferramenta para redução do tabagismo porque oferece a nicotina sem os malefícios do tabaco, além de mimetizar o ritual do cigarro.

"A alternativa de usar vape começa dentro da proposta de redução de danos para fazer a pessoa não se sentir excluída nem responsabilizada por esse comportamento. Isso ajuda no fortalecimento da saúde mental do tabagista. Mesmo sem incentivo político e financeiro, essa nova tecnologia [no Brasil] tem mostrado inúmeros resultados", disse.

A alternativa de usar vape começa dentro da proposta de redução de danos para fazer a pessoa não se sentir excluída nem responsabilizada por esse comportamento

Monica Gorgulho

Psicoterapeuta com base psicanalítica, ex- presidente da Rede Brasileira de Redução de Danos

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Edgard Mesquita Rodrigues Lima, cirurgião oncológico e Membro Titular da SBCO (Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica) - Rogério Cassimiro/Estúdio Folha

Os especialistas explicaram que a nicotina provoca dependência, e muitas pessoas têm enorme dificuldade de abandonar o vício de uma vez. "O consumidor vai atrás da sensação de prazer que a nicotina traz. E negligencia todos os outros riscos em busca desse prazer. Então, a partir do momento que você tem a opção de ofertar um produto com quantidade menor de substâncias nocivas e mesmo assim entregar a nicotina, dar esse prazer ao usuário, com menos riscos, é algo em que precisamos pensar", afirmou Rodrigues Lima.

O risco a que os consumidores estão expostos é outra preocupação dos profissionais de saúde. Como o produto não tem a fabricação regulamentada e é 100% oriundo do mercado ilegal, é muito difícil obter informações sobre o que está sendo consumido.

"Isso afeta até a conduta médica. Em uma emergência, o profissional de saúde não tem como atender o paciente de forma adequada em caso de intoxicação", disse Joelmir Silva, farmacêutico e professor da Faculdade de Medicina de Olinda.

Isso [a proibição] afeta até a conduta médica. Em uma emergência, o profissional de saúde não tem como atender o paciente de forma adequada em caso de intoxicação

Joelmir Silva

Doutor em farmacologia e professor da Faculdade de Medicina de Olinda

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Joelmir Silva, doutor em farmacologia e professor da Faculdade de Medicina de Olinda - s Rogério Cassimiro/Estúdio Folha

"As pessoas também não sabem dos riscos. Os jovens usam na balada, na faculdade, na escola, como se fosse inócuo. É preciso divulgar a informação. Com o cigarro convencional fazemos isso, há regulamentação, informação, aquelas fotos nada bonitas na embalagem. Nossos órgãos de saúde parecem considerar que não existem usuários no país quando há milhões de pessoas usando", completou Rodrigues Lima.

Uma das principais preocupações dos especialistas em saúde é com o consumo por crianças e adolescentes. A adolescência é uma fase de experimentações, e o cigarro eletrônico tem sido apresentado a essa camada da população sem filtros.

"A discussão tem sido tão calada que deixa o adolescente livre para pensar qualquer coisa. E ele está navegando livremente", disse Monica Gorgulho.

  • Cigarros eletrônicos ou tradicionais não são isentos de riscos e não são destinados a menores de idade.
  • A redução de riscos de vaporizadores e produtos de tabaco aquecido, citada durante nosso seminário, é baseada nas evidências científicas mais recentes disponíveis e desde que haja a substituição completa do consumo de cigarros tradicionais.

*Conteúdo patrocinado produzido pelo Estúdio Folha