Escavações arqueológicas comprovam que há mais de 10 mil anos os asiáticos já sabiam que o cânhamo tinha inúmeras utilidades. Agora, porém, a planta virou uma espécie de estrela do mercado internacional, cada vez mais alinhado com os princípios ESG, sigla paraEnvironmental, Social and Governance (Governança Ambiental, Social e Corporativa). Tanto que ao menos 50 países já regularam o cultivo para a exploração comercial do cânhamo, que se impõe não apenas como mais uma commodity agrícola mas pelo valor agregado que confere ao produto industrializado.
O cânhamo é o nome popular dado à Cannabis ruderalis, que, diferentemente da Cannabis sativa, tem quase zero THC, que causa efeitos psicotrópicos. Essa foi a brecha para que países o retirassem da lista proibida de cultivo, definissem novos marcos regulatórios e abrissem as fronteiras para os negócios.
Nos EUA, a legalização do cultivo do cânhamo veio com a aprovação da Farm Bill, em 2018. Até então, qualquer tipo de Cannabis era considerado ilegal no país. No Brasil, a planta segue proibida.
"Existia uma grande dificuldade de a fiscalização diferenciar a Cannabis sativa do cânhamo. Por isso, a legislação americana proibiu o plantio e a comercialização de todas as variantes da planta durante décadas", explica Marcelo Grecco, um dos sócios fundadores da The Green Hub, a primeira aceleradora brasileira de negócios da Cannabis do Brasil. "Mas a tecnologia resolveu isso. As plantações são vigiadas por drones que conseguem distinguir as mais variadas espécies."
De acordo com os especialistas, há cerca de 25 mil possibilidades de aplicabilidade na indústria, com vantagem de ser 100% aproveitável – nada é descartável. Da semente sai o óleo nutricional, usado na indústria de alimentos e da beleza; da flor, os extratos medicinais; e do caule, fibras que interessam às indústrias têxtil, automotiva, construção e muitas outras.
"No ano passado, a Federação Internacional de Automobilismo autorizou os carros construídos com fibras da Cannabis na F-1", diz Marcelo Grecco, da The Green Hub. A medida amplia o potencial econômico do cânhamo, já que as pistas de corrida funcionam como uma espécie de laboratório da indústria automobilística. Foi assim com os freios ABS e o câmbio automático.
A preocupação na F-1 é reduzir custos e, claro, a pegada de carbono. Nesse critério, o cânhamo larga bem à frente. Isso porque o cultivo da planta tem produção de carbono negativo, ou seja, coleta mais CO2 da atmosfera do que a quantidade total emitida na colheita, processamento e transporte.
O cânhamo também se diferencia pela capacidade de limpar o solo. "A planta é muito usada na entressafra de outras culturas", diz Sérgio Rocha, diretor e fundador da ADWA, especializada no desenvolvimento de tecnologia para cultivo de baixo custo. "O solo de qualquer cultura precisa descansar para que não se esgote. O ideal não é deixá-lo vazio, mas revezar com outro plantio", explica. "E o cânhamo se apresenta como boa opção."
Na Universidade Federal de Viçosa (MG), Rocha pesquisa o melhoramento genético do cânhamo. O objetivo é desenvolver plantas adaptadas aos diversos climas e relevos, para que sejam mais resistentes e elevem a concentração de canabinoides – o que aumenta o potencial produtivo da safra.
Além dos EUA, China, França, Portugal e Canadá são grandes produtores de cânhamo. Na América do Sul, o Paraguai começa a despontar nesse mercado, mas com a produção voltada à fabricação e à exportação de produtos industrializados.
"No Brasil, a legislação não diferencia o cânhamo da Cannabis. Por isso, o plantio continua proibido, assim como a importação da matéria-prima", diz Rafael Arcury, advogado e diretor executivo da Associação Nacional do Cânhamo Industrial. "Até as sementes do cânhamo, que são excelentes alimentos para animais, têm restrições", diz ele.
"Na Europa, lojas especializadas em produtos de beleza e de bem-estar feitos com cânhamo fazem muito sucesso", diz Marcel Grecco, fundador e CEO da The Green Hub. "A grande maioria é elaborada com CBD (canabidiol) e óleo extraído da semente da planta, que tem alto teor proteico, maior que o da chia." Não se trata apenas de produtos artesanais. Grandes empresas já se deram conta do diferencial que o cânhamo representa e incluem em seu portfólio produtos que têm em sua composição derivados da planta.
A multinacional Colgate, por exemplo, passou a produzir um creme dental feito com óleo da semente do cânhamo, vendido em embalagem reciclável. A matéria-prima também é usada por conhecidas empresas de cosméticos, caso da Body Shop, Avon e Tresemmé. "No setor de alimentos, as internacionais Thomy, Nepra Foods e Heinz, marcas fortes na indústria alimentícia, fabricam maioneses à base de cânhamo", diz Marcel. Com tantos benefícios e vantagens sustentáveis, já há um verdadeiro boom de lojas especializadas em produtos elaborados a partir do cânhamo espalhadas pela Europa e pelos Estados Unidos.
TGH vai acelerar startups e empresas brasileiras no Paraguai
As possibilidades de negócios com o cânhamo no mercado internacional vêm atraindo empreendedores brasileiros, que enxergam e apostam no potencial do setor. Além dos Estados Unidos e do Canadá, o Paraguai é a grande novidade do mercado.
Em apenas quatro anos, o país regulou e consolidou o cultivo de cânhamo voltado para a manufatura de produtos à base da planta, com foco na exportação. E vem se destacando, principalmente, no comércio com países europeus, Costa Rica, EUA, Canadá, Austrália, entre outros. Em breve, os brasileiros devem eleger o país vizinho como o novo porto de investimentos da indústria do cânhamo.
O fluxo já começou. A aceleradora The Green Hub fechou parceria, em setembro, com a Healthy Grains, uma das maiores empresas paraguaias de desenvolvimento de produtos de cânhamo. O acordo foi selado durante o Cannabis Thinking, evento anual da empresa brasileira, que atrai os maiores players do setor
"A The Green Hub Brasil e a Healthy Grains caminham juntas rumo a uma nova aliança estratégica focada em conceito, P&D, produção, comercialização e distribuição de produtos à base de cânhamo a partir de Assunção, no Paraguai, para o mundo", diz Alex Lucena, diretor de inovação da The Green Hub. A aceleradora deve guiar empresas e startups brasileiras interessadas em desenvolver artigos de cânhamo e que poderão contar com a infraestrutura da Healthy Grains.
"Somos a primeira nação da América Latina a exportar produtos manufaturados com cânhamo", diz Marcelo Demp, CEO da Healthy Grains e presidente da Câmara Industrial de Cânhamo do Paraguai. "Temos mais de 200 variedades de produtos terminados e registrados. Precisamos que o mundo nos enxergue como um dos principais players de produtos de qualidade à base de cânhamo e que as empresas brasileiras vejam nossa operação no Paraguai como o lugar perfeito para elaborar novos produtos que serão distribuídos em várias partes do mundo", afirma.
"O Paraguai conseguiu construir uma economia completa da Cannabis – do cultivo à manufatura – mas baseada em política de Estado, que tem como objetivo estimular o trabalho da iniciativa privada no setor", explica Lucena, que acompanhou de perto o desenvolvimento do cânhamo no Paraguai. "O Uruguai foi o primeiro a entrar no mercado da Cannabis, mas hoje tem 80 toneladas de cânhamo estocado. Vende a flor no lugar do produto acabado. O Paraguai faz o contrário", diz Lucena. "Esse é o pulo do gato."