Depressão exige intervenção urgente, acolhimento e tratamento adequado

Só no Brasil, cerca de 12 milhões de pessoas têm a doença e quase 12 mil morrem por suicídio todos os anos; para especialista, transtorno deve ser tratado como uma emergência médica

Doutor, sei que, se eu me matar, vou para o inferno. Mas minha vida aqui é muito pior do que o inferno.

Foi assim que dois pacientes descreveram a depressão para o médico Humberto Corrêa, professor titular de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Homens religiosos preferiam, segundo suas crenças, enfrentar a condenação divina a viver com o transtorno.

A frase é reveladora da premência em conceituar a depressão como uma emergência médica. Uma questão de saúde pública agravada pela pandemia do coronavírus. Em primeiro lugar, é imprescindível livrar o transtorno dos preconceitos religiosos, morais e culturais. A depressão é uma doença como qualquer outra e o suicídio, seu desfecho mais trágico –resultado, na imensa maioria das vezes, da precariedade no manejo do distúrbio.

O diagnóstico no tempo certo e o tratamento adequado garantem aos pacientes uma vida absolutamente normal. Há de se bater nessa tecla muitas e muitas vezes. Pois somente metade dos doentes está em tratamento e deles, apenas 20% estão, de fato, bem assistidos1.

Das cerca de 800 mil pessoas que todos os anos tiram a própria vida, a quase totalidade é portadora de doença mental2. "Delas, entre 50% e 60% sofrem de depressão", diz o professor da UFMG. Sem controle, o transtorno aumenta em sete vezes a probabilidade de suicídio3.

Globalmente, os suicídios estão em queda. Menos no Brasil e nos Estados Unidos. Por aqui, entre 2000 e 2016, a mortalidade cresceu 35%4. Todos os anos, em torno de 12 mil brasileiros morrem por suicídio –60% deles têm menos de 44 anos, segundo Corrêa. Por causa das subnotificações, esse número é, no mínimo, 20% mais alto5. Mas é possível mudar esse cenário. Com o controle correto da depressão e com programas nacionais de prevenção, 90% dos suicídios poderiam ser evitados2.

O transtorno também exige intervenção urgente dada sua alta prevalência global. Entre os países com as maiores taxas de depressão, o Brasil aparece em quinto lugar. - são cerca de 12 milhões de doentes6. Essas estatísticas não consideram o aumento de casos decorrente da crise sanitária. Sem controle, o paciente, mesmo sem ideação suicida, vive muito mal. A doença compromete suas relações sociais, funcionalidade e produtividade.

"Nossa responsabilidade é falar sobre a depressão como um assunto de saúde, um assunto científico, e, com isso, esclarecer as pessoas", defende o professor da UFMG. Só assim será possível construir uma sociedade mais empática, livre de preconceitos. Uma sociedade na qual os pacientes, bem informados, estão engajados na busca pelo melhor tratamento.

O acolhimento da família, dos amigos e dos colegas de trabalho foi fundamental para a recuperação da enfermeira Eliana Zaparolli, de 58 anos. "Todos compreenderam minha situação", conta. "Meu marido e minha filha não me cobravam o que eu não podia fazer", diz Eliana. "Eles diziam: ‘Vai passar."

A depressão se manifestou em 2003. "O sofrimento psíquico, a dor, era enorme", lembra ela. "Eu tinha pouca energia, não conseguia me concentrar, perdi a capacidade de sentir prazer, sentia um mal estar generalizado, com dores no corpo."

O quadro foi agravado pela conduta de um médico que, mais tarde a enfermeira descobriria, não era psiquiatra. Um ano depois, ela encontrou o especialista que a acompanha até hoje. A partir de então, Eliana enfrentou um calvário vivido por muitos pacientes de depressão –a busca pelo melhor tratamento. "Tive de trocar de remédio várias vezes", conta. Eliana tinha certeza de que, em algum momento, controlaria a depressão.

Nesse período, ela contou com o apoio do marido, da filha, hoje com 28 anos, dos pais e dos colegas de profissão. No trabalho, depois de passar por perícia médica, conseguiu reduzir a carga horária como professora na Escola de Enfermagem, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Quatro anos depois, em 2008, Eliana finalmente conseguiu controlar a depressão. Mudou sua rotina e aprendeu a respeitar os sinais que o corpo dá. "Se eu tenho um dia muito agitado, eu preciso dormir de sete a oito horas", relata. Hoje ela faz exercícios físicos, participa de atividades religiosas e é voluntária na Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata). Em novembro, se forma em arteterapia, uma técnica que, segundo ela, lhe ensinou a expressar seus sentimentos e emoções. "Sinto que tenho a missão de ajudar as pessoas que passam pelo que eu passei", completa. A rede de solidariedade em torno de Eliana ainda é rara para a maioria dos pacientes com depressão. O acolhimento, segundo ela, deveu-se, em grande parte, pelo fato de ela ser uma profissional de saúde.

A busca de Cauê pela estabilidade psíquica foi extremamente solitária. Tanto que o executivo de 48 anos pede para não ser identificado pelo nome verdadeiro. "Sabe como é, né? O ambiente corporativo é muito competitivo", explica. "E ainda tem aquela ideia de que depressão é coisa de vagabundo. Quando eu tinha de me ausentar no trabalho, inventava que estava em tratamento para o joelho."

Em janeiro 2016, desempregado, ele se separou da esposa e o filho, então com 11 anos, foi viver com a mãe em uma cidade a 400 quilômetros de distância. "Fui suportando, suportando.... Eu só pensava em dormir, como forma de anestesiar os problemas", lembra. "Eu não pensava em tomar veneno, nada disso, mas dormir é uma forma de morte, né?" O executivo tem certeza de que, com o apoio dos parentes e amigos, teria buscado ajuda mais cedo.

Certo de que, sem ajuda especializada, não sairia daquele estado de torpor, Cauê foi ao médico. Ao contrário de Eliana, ele acertou rapidamente a medicação. "Aí minha vida mudou", diz ele. Hoje, o executivo está namorando, passa férias deliciosas com o filho, tem seu lugar no mercado de trabalho, emagreceu 25 quilos, é assíduo na academia e já fez duas viagens para o exterior pela empresa. E ele não se incomoda de realizar o tratamento de forma contínua? De jeito nenhum "Quero estar na minha melhor forma", afirma. "E eu estou voando."


Referências texto:

1. "Depressão" (Depressão - OPAS/OMS | Organização Pan-Americana da Saúde) - (paho.org); 2. "Preventing suicide – A global imperative" - (http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/131056/9789241564779_eng.pdf?sequence=1); 3. "Suicidality and quality of life in treatment-resistant depression patients in Latin America: secondary interim analys of the TRAL Study" - (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8924115/#B8); 4. "Suicide and suicide risk" - (https://www.nature.com/articles/s41572-019-0121-0); 5. "Mortalidade por suicídio: várias razões para prevenir" - (https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/direitos-humanos/mortalidade-por-suicidio-varias-razoes-para-prevenir); 6. "Depression and other common mental disorders – Global health estimates" - (https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/254610/W?sequence=1)