Doença hereditária mais frequente no Brasil, falciforme necessita de atenção multidisciplinar

Live apresentou panorama da enfermidade no país e busca pelo tratamento

A doença falciforme é a enfermidade hereditária mais frequente no Brasil. Estima-se que ao menos 3.500 pessoas nasçam por ano no país com a Doença Falciforme, que provoca inflamações crônicas, obstrução de vasos sanguíneos e episódios agudos de dor. As complicações são muito sérias e podem levar à morte.

No Dia Nacional da Luta pelos Direitos das Pessoas com Doenças Falciformes, 27 de outubro, o Estúdio Folha em parceria com a Novartis realizou uma live sobre o tema e apresentou o cenário do problema no país, onde ainda há um longo caminho no cuidado da saúde integral desses pacientes.

"É uma das doenças que eu mais trato. A doença falciforme é um conjunto de doenças que herdam uma mutação falciforme, chamada de hemoglobina S. Quando [o paciente] herda a hemoglobina S do pai e da mãe, temos a Anemia Falciforme SS, que é a mais frequente no Brasil. Mais de 60% desses pacientes têm anemia falciforme", explicou a médica Ana Cristina Silva Pinto, hematologista do Hemocentro de Ribeirão Preto, da Faculdade de Medicina da USP-Ribeirão.

A doença falciforme engloba várias combinações dessa alteração genética, a hemoglobina S, produzida no lugar da hemoglobina A, presente no sangue de quem não tem a doença. A DF é caracterizada pela alteração nos glóbulos vermelhos, que perdem a forma arredondada e elástica, tornando-se parecidos com uma foice, o que dificulta a circulação.

"Essa hemácia em formato de foice não só atrapalha o fluxo sanguíneo, causando turbilhonamento, como também adere mais ao vaso sanguíneo. Isso pode ocasionar oclusão dos vasos sanguíneos e pode causar infartos e isquemias, por isso são conhecidas como crises dolorosas", completou a hematologista.

O transporte de oxigênio dentro do organismo é diretamente afetado, como explicou o médico Rodolfo Cançado, hematologista, membro do Comitê de Glóbulos Vermelhos da ABHH (Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular) e professor da Santa Casa de São Paulo.

"Basicamente, [acarreta] todas as consequências da anemia: fraqueza, cansaço, menor desempenho na escola, no trabalho, dor de cabeça, tontura. E, outro lado, é a oclusão do vaso. Como o sangue deve ser fluído para levar o oxigênio a todas as células, na medida em que há uma oclusão, impede-se o transporte de oxigênio, levando a isquemia e a necrose de diferentes territórios do organismo."

"Além da crise dolorosa, há dano do órgão onde está ocorrendo essa oclusão do vaso. Há as crises agudas e o dano progressivo de alguns órgãos que podem ser acometidos ao longo da vida. Pode ocorrer com o sistema nervoso central, nos olhos, no baço, fígado, pernas", listou o professor.

Algumas complicações são mais frequentes na infância, como o derrame cerebral, complicação mais grave e mais temida, e as infecções de uma forma geral, até os cinco anos de vida.

A infância da paciente falcêmica Sheila Ventura, de 41 anos, foi marcada pelas piores dificuldades por causa da doença. "Minha mãe teve oito filhos e, quando eu nasci, ela já tinha perdido cinco com diagnóstico de meningite e pneumonia. Quando fui diagnosticada, foi feito um mapeamento genético. Meu pai, que tinha 39 anos, uma das minhas irmãs, que tinha 2, também [receberam o mesmo diagnóstico]."

"Chegar aos 40 foi uma grande conquista. Fui diagnosticada aos sete anos, antes disso foi feito um tratamento de reumatismo que fragilizou muito minha parte óssea. Os médicos diziam para minha mãe que eu não passaria dos 15", relembrou Sheila, que hoje é coordenadora da APROFe (Associação Pró Falcêmicos) e Presidente do FOPPESP (Fórum de Portadores de Patologias do Estado de São Paulo).

"Chegar aos 40 foi uma grande conquista. Fui diagnosticada aos sete anos, antes disso foi feito um tratamento de reumatismo que fragilizou muito minha parte óssea. Os médicos diziam para minha mãe que eu não passaria dos 15"

Sheila Ventura, 41, paciente falcêmica, coordenadora da APROFe (Associação Pró Falcêmicos) e Presidente do FOPPESP (Fórum de Portadores de Patologias do Estado de São Paulo)

"Na década de 60/70, um estudo nos EUA afirmava que a sobrevida era de 20 anos. E foi o que motivou a inserção da triagem neonatal para doença falciforme lá. Mais da metade das crianças morriam antes dos cinco anos de vida por infecção, mesmo diagnóstico dos óbitos dos irmãos da Sheila. Esses pacientes têm mais suscetibilidade a esses germes", explicou Ana Cristina.

DIAGNÓSTICO

"É uma doença grave que acomete setores mais vulneráveis da população, com situações socioeconômicas e sanitárias precárias, isso exige intervenção governamental. O primeiro ponto é o diagnóstico, um grande avanço foi o programa nacional de triagem neonatal, chamado de teste do pezinho", destacou o doutor Rodolfo.

A eletroforese de hemoglobina foi incluída no teste do pezinho para detectar se o bebê tem a doença ou o traço, ou seja, quando a pessoa herda a alteração de apenas um dos genitores e não desenvolve a doença, mas pode transmiti-la aos filhos. Quanto mais cedo é feito o diagnóstico, mais rápido é o encaminhamento para um centro de referência.

"A cobertura hoje é entre 80% e 84%, um avanço no reconhecimento da doença falciforme como problema de saúde pública", afirmou o médico.

"É uma doença grave que acomete setores mais vulneráveis da população, com situações socioeconômicas e sanitárias precárias, isso exige intervenção governamental. O primeiro ponto é o diagnóstico, um grande avanço foi o programa nacional de triagem neonatal, chamado de teste do pezinho"

Rodolfo Cançado, hematologista, membro do Comitê de Glóbulos Vermelhos da ABHH (Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular) e professor da Santa Casa de São Paulo

O sofrimento da mãe de Sheila com a perda dos filhos foi ainda maior pelo preconceito. "Havia muita discriminação, ela era negra, tinha poucos estudos e, como meus irmãos estavam falecendo, levava a culpa, era acusada de maus-tratos com as crianças. Quando fui diagnosticada, ela começou a procurar ajuda com afinco, a dar medicações caseiras, fígado com fanta uva, prego no feijão, que eram para anemia", lembra.

A mãe, que tinha traço falciforme, morreu aos 36 anos, quando Sheila estava com apenas 14. "Foi um desafio muito grande, porque eu tinha que cuidar da minha irmã e descobrir o que a gente tinha."

"Aos 20 anos, minha irmã foi hospitalizada e eu, também. Foi quando conheci a associação da qual hoje faço parte. Não conhecia outros pacientes e éramos conhecidas na nossa região, do Alto Tietê, Suzano, como as loucas, porque a gente chegava gritando de dor no hospital", contou Sheila.

"Além da dor em si, a vida para, por conta disso, e é uma rotina para os pacientes. Eles têm que procurar pronto-atendimento para receber medicação na veia. E também estudos recentes [mostram] que, além da qualidade de vida, há uma redução na expectativa de vida desses pacientes. Quem tem mais de três crises vaso-oclusivas graves no ano tem o dobro de chance de vir a óbito", comentou Ana Cristina.

O relato de Sheila deixou claro como as crises dolorosas e o preconceito podem ser terríveis para o paciente. "Tentei três vezes o suicídio, tem a dor da necrose, mas a dor emocional é pior."

"Me senti na obrigação de aprender o que eu tinha para cuidar melhor da minha irmã e para explicar melhor para os médicos que não conheciam a doença. Não havia qualidade de escuta. Com a associação, a realidade foi outra", disse Sheila, que se formou em assistência social há quatro anos.

"Além da dor em si, a vida para, por conta disso, e é uma rotina para os pacientes. Eles têm que procurar pronto-atendimento para receber medicação na veia. E também estudos recentes [mostram] que, além da qualidade de vida, há uma redução na expectativa de vida desses pacientes. Quem tem mais de três crises vaso-oclusivas graves no ano tem o dobro de chance de vir a óbito"

Ana Cristina Silva Pinto, hematologista do Hemocentro de Ribeirão Preto, da Faculdade de Medicina da USP-Ribeirão

TRATAMENTO

"Há uma diversidade de apresentação clínica mesmo dentro da Anemia Falciforme. Os pacientes que têm mais de três crises por ano, precisam de tratamento, hoje temos a hidroxiureia. Se o paciente não tolera a medicação, temos hoje, única e exclusivamente, no SUS, a outra opção terapêutica, que seria a transfusão", contou a hematologista.

"Para os pacientes mais graves, que possuem irmão compatível, nós temos o transplante de medula óssea, a única opção curativa que existe no SUS. Mas infelizmente, temos poucos centros no Brasil que fazem."

"Já faz 120 anos da descoberta da doença. Só em 2000, surgiu a hidroxiureia. Há novos fármacos que agem de forma mais segura, bastante eficazes. Essa área tem ganhado outras opções de tratamento que antes a gente não tinha", completou Rodolfo.

POLÍTICAS PÚBLICAS

Em 2005, foi instituída a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme, extinta pelo atual governo.

"Havia um comitê de assessoramento técnico para doença falciforme, com inúmeros profissionais da saúde voluntários, de vários Estados, como Bahia, onde há o maior número de casos, e Rio de Janeiro, o segundo maior. Ao longo de mais de uma década muita coisa melhorou", relatou Ana Cristina que, ao lado de Rodolfo, fazia parte do grupo.

Por meio do comitê, foram criados muitos protocolos de tratamento, como o manejo da hidroxiureia.

Os médicos são unânimes sobre a complexidade do paciente que precisa dos serviços de atenção básica, onde busca ajuda para tratar das dores fortes, além da necessidade de acompanhamento por uma instituição de referência, com profissionais para o tratamento complexo, como a hidroxiureia, a transfusão de sangue e até o transplante.

Rodolfo afirmou que falta um registro nacional de doença falciforme e de políticas públicas integradas para conseguir atender o paciente.

"Temos um grupo de trabalho para o Estado de São Paulo, são cerca de 22 centros de referência, que acompanham mais de 90% das pessoas com a doença, que funcionava bem até a pandemia", contou o médico.

No âmbito governamental, na esfera estadual, há o Projeto de Lei 1.023/2009, do ex-deputado Luiz Carlos Gondim, que visa instituir a Política Estadual de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias, que aguarda deliberação desde 2010.

O projeto prevê disseminar informações sobre a doença; ampliar a cobertura de triagem neonatal, organizar a rede de atenção para oferecer assistência de qualidade, capacitar profissionais de saúde e implantação de sistema informatizado para cadastro de pessoas com doença falciforme.

Enquanto não houver cadastro nem treinamento de equipes médicas, Sheila aconselha os pacientes a conhecerem a doença a fundo. "Falo para eles que têm que carregar o protocolo clínico como se fosse uma Bíblia."

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