Descrição de chapéu câncer

Demora no acesso a novos tratamentos contra o câncer de mama representa anos de vida a menos para pacientes do SUS

Roda de conversa entre especialistas aponta consequências da diferença entre sistemas público e privado e expectativa de explosão de novos casos com represamento de exames durante a pandemia

O câncer de mama é um problema de saúde pública. Em 2021, alcançou a posição de câncer mais comum do mundo, segundo a OMS. Dados do Instituto Oncoguia atestam que no Brasil é o tumor que mais mata mulheres, sendo que 35%1 das pacientes brasileiras descobrem a doença em estágio avançado ou metastático. A pandemia do coronavírus comprometeu ainda mais o rastreamento da doença no país, com dados apontando uma redução de 45%2 de mamografias em 2020 e de 50%2 em 2021.

Há um abismo em número de anos e de qualidade de vida em mulheres com câncer de mama em estágio avançado tratadas pelo sistema público quando comparadas às que se tratam pela rede de saúde suplementar. Uma das explicações é a falta de acesso a tratamentos mais modernos. Essa foi a conclusão dos debatedores da mesa redonda sobre o tema, realizada pelo Estúdio Folha em parceria com a Novartis.

O debate teve a participação de Patrícia Beato, oncologista clínica e embaixadora da BC Academy, programa de educação médica continuada interinstitucional sobre câncer; Carlos Barrios, oncologista do Grupo Oncoclínicas da PUC do Rio Grande do Sul, e diretor do Lacog, grupo de pesquisas latino-americano em oncologia; e Frederico de Castro Escaleira, médico oncologista e deputado federal por Minas Gerais, coordenador do grupo de trabalho Desafios da Oncologia no Brasil e presidente da comissão de Direitos da Pessoa Idosa.

Mediado pela jornalista Silvia Corrêa, o debate abordou os desafios no tratamento do câncer de mama em estágio avançado/metastático, que antes da pandemia de Covid-19 já representava 40% dos casos.

ATRASOS

Os especialistas temem que, em razão dos diagnósticos de câncer represados durante a pandemia de Covid-19, o número de casos em estágio avançado aumente, sobretudo pelo atraso no início do tratamento de novos pacientes. E o sistema público de saúde precisa se preparar para atender o aumento da demanda que virá.

Patrícia Beato alertou que os casos já estão chegando aos consultórios em estágio mais avançado do que antes, não apenas em câncer de mama, mas também em outros tipos da doença.

“O atraso no diagnóstico é uma situação multifatorial, que vai desde o medo dos pacientes em se expor até a dificuldade de acesso aos postos de saúde, a um clínico ou a um mastologista. Há um colapso dos sistemas de saúde, não apenas no SUS, mas também no sistema suplementar, em diversas localidades e em cidades menores”

Patrícia Beato, oncologista

São 60 mil3 novos casos de câncer de mama anualmente no país, com pelo menos 35%1 diagnosticados já em estágio metastático, que é quando a doença se espalha para outros órgãos.

Para Carlos Barrios, o sistema de saúde público já funcionava no limite e com muitas restrições antes da pandemia, e é ingênuo pensar que esse quadro não será ainda mais agravado, tanto para o câncer como para outras doenças.

“Não há dúvida nenhuma de que esta é uma realidade de hoje e uma perspectiva certa no futuro. Temos que reconhecer o problema e nos preparar hoje para, em um ou dois anos, enfrentar um número cada vez maior de casos avançados”, disse.

Segundo o médico, o câncer em geral, e não apenas o de mama, é uma epidemia, e, com o aumento da expectativa de vida das pessoas, os casos vêm aumentando. “Desde 2018, o câncer já é a primeira causa4 de morte em Porto Alegre. E é também a primeira causa de morte em um número enorme de municípios em todo o país. Até 20305, vai ser a primeira causa de mortes no Brasil.”

“Não podemos esperar isso (aumento de novos casos) acontecer para enfrentar esse desafio. Temos que preparar o sistema de saúde, as políticas públicas e os profissionais. Para isso, o diagnóstico é fundamental, e ele exige uma série de medidas preventivas e preparatórias para que se possa enfrentar essa situação.”

Carlos Barrios, oncologista

O deputado Frederico Escaleira afirmou que o Legislativo federal está atento ao que está acontecendo.

“Estamos enfrentando na prática uma pandemia de casos de câncer, que temos que enfrentar no curto, no médio e no longo prazo. No curto prazo temos que focar a adaptação do sistema para receber casos graves. Pretendemos aproveitar parte da infraestrutura criada para a Covid-19 para a oncologia, na qual todas as cirurgias são de urgência, para não aumentar a chance de o câncer ficar avançado”, disse.

O deputado afirmou que a comissão que preside trabalha em contato direto com a sociedade de cirurgia oncológica e busca a proximidade com os ministérios, avaliando as leis que já existem de 30 dias para o diagnóstico e de 60 dias para o tratamento. “Nosso foco é fazer com que essas leis sejam cumpridas. E no curto prazo programar a retomada do diagnóstico precoce.”

Segundo o deputado, para dar conta do aumento de casos de câncer, o maior problema é o orçamento. “Além de usar a infraestrutura criada para a Covid, temos trabalhado para aproximar o Ministério da Saúde e a indústria farmacêutica, para que se consiga utilizar parte do orçamento para melhorar o tratamento nos casos avançados e graves.”

Barrios enfatizou que a saúde é um problema complexo e que o recurso financeiro é um dos elementos mais importantes. Destacou, porém, que “se continuarmos fazendo o que sempre foi feito, não chegaremos a resultados satisfatórios".

“A minha proposta é juntar em uma grande mesa todos os players envolvidos no processo, e obrigar todo mundo a negociar até chegar a uma solução nova que tenha chances de funcionar. Nessa mesa precisam estar o governo, a indústria farmacêutica, os planos de saúde, as instituições médicas e as que representam os pacientes.”

DIFERENÇAS ENTRE PÚBLICO E PRIVADO

Os três debatedores ressaltaram as diferenças que existem entre os tratamentos oferecidos às pacientes do SUS e àquelas que têm planos de saúde suplementar. Patrícia Beato lembrou que há 20 anos o SUS não atualiza as terapias para o tratamento de câncer de mama avançado do tipo mais comum, que corresponde a cerca de 70%6 dos casos, nos quais as pacientes estão em período pré-menopausa, ou seja, são jovens e estão em idade economicamente ativa.

Para Barrios, a diferença é brutal. “A diferença entre o sistema de saúde suplementar e o SUS é tão grande quanto o dia e a noite. Existem novos tratamentos hoje que ainda são impensáveis para quem se trata pelo SUS”. No Brasil, apenas 25%7 da população tem plano de saúde.

“Quando o caso chega em estágio avançado, sabemos que existem hoje medicamentos muito melhores do que tínhamos há cinco ou dez anos. Entretanto, esses tratamentos não estão disponíveis pelo SUS”, disse.

Patrícia Beato disse que o desenvolvimento tecnológico anda de mãos dadas com a especialidade oncológica, com a criação de novas drogas, incluindo o campo genético, com uma resposta muito mais positiva. Isso inclui medicamentos subcutâneos, endovenosos e orais. "Com certeza, se conseguíssemos incorporar os novos tratamentos em todos os perfis do câncer de mama, teríamos ótimos resultados.”

Segundo a médica, muitas drogas que são usadas hoje para os casos mais avançados logo serão também para evitar a progressão da doença. E esse é um outro desafio. "Se hoje a gente já tem dificuldade em incorporar determinados medicamentos para a doença metastática, é ainda mais difícil incorporá-los ao sistema público para os casos menos graves, onde se obteria uma resposta ainda mais positiva para a paciente.”

Para a médica, as políticas e a trajetória do paciente no sistema público precisam ser revistas. “Hoje, uma paciente com câncer metastático pode ter uma sobrevida de 5 anos livres da progressão da doença, além da melhora na sobrevida global da paciente, se ela puder fazer uso dos novos medicamentos existentes. Cada vez mais o diferencial está na personalização do tratamento”, explicou.

O deputado Dr. Frederico acredita que o avanço da tecnologia irá aumentar ainda mais o abismo entre os sistemas de saúde.

"Estudos que apresentamos em 2019 demonstraram que 50 mil mortes por câncer ocorreram pelo paciente não ter acesso à cirurgia no momento adequado. Cabe a Câmara Federal forçar esse diálogo. Vamos trabalhar para melhorar e dignificar a vida de quem tem que passar pelo câncer”

Frederico de Castro Escaleira, oncologista e deputado federal

Os médicos concordaram que a falta de acesso a novos tratamentos aumenta o número de mortes. “Entre 2005 e 2012 no Brasil, morreram 5.000 mulheres de câncer de mama por não terem acesso a uma medicação que poderia curá-las. E isso só foi resolvido a partir de 2013”, disse Barrios. O médico afirmou que isso vai acontecer novamente com outros medicamentos curativos, novos ou em desenvolvimento, aos quais a maior parte das pacientes no Brasil não terá acesso.

“Alguém terá que ser responsável por essas mortes, seja por omissão ou por não ter feito o que precisaria. E a participação da mídia e da indústria é fundamental nesse debate. A epidemia da Covid nos ensinou que a participação ativa da mídia, quando bem utilizada, foi fundamental para o combate da doença. Ela funciona para engajar a sociedade na discussão”, disse Barrios.

CONSULTA PÚBLICA

Para tentar incorporar tratamentos melhores à rede pública de saúde, o deputado Dr. Frederico defendeu que as audiências públicas são de grande relevância.

Atualmente está em andamento uma consulta pública justamente para discutir a incorporação de medicamentos contra o câncer no SUS. Clique para saber como participar e a importância do processo.

“Os problemas relatados aqui têm que ser divulgados, para a participação da sociedade. É um absurdo que a pessoa tratada no sistema suplementar tenha anos de vida a mais do que a pessoa tratada pelo SUS. É um abismo.”

Segundo o deputado, o governo precisa ser um agente de mudança junto aos demais players, e contar com a força da sociedade e das instituições que representam os pacientes. Embora conciliar os interesses de todos os players não seja tarefa fácil, ele reforça que casos como esses, em que a pessoa pode viver 5 anos ou mesmo 6 meses a mais, com o uso de determinado medicamento, precisam ser resolvidos.

“As prioridades do governo federal vão sendo dadas de acordo com a força da população. A gente está aqui para pressionar o Ministério da Saúde, e contamos com os especialistas e os grupos que defendem os pacientes para que a gente possa ser ouvido”.

VETOS

O oncologista Carlos Barrios finalizou destacando dois aspectos. O primeiro é a importância de derrubar o veto presidencial ao Projeto de Lei 6330/19 que obriga os planos de saúde a cobrirem os gastos de clientes com medicamentos de uso domiciliar e oral contra o câncer. O projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados no começo de julho.

O segundo aspecto é fortalecer a Lei da pesquisa clínica, que além de avançar no conhecimento científico, “é uma forma de disponibilizar medicamentos para a população através da pesquisa clínica, anos antes que eles estejam disponíveis na farmácia”.

REFERÊNCIAS:

  1. Instituto Oncoguia. Mais de 35% descobriram câncer de mama já avançado, mostra estudo. Disponível em: http://www.oncoguia.org.br/conteudo/mais-de-35-descobriram-cancer-de-mama-ja-avancado-mostra-estudo/12237/42.

  2. Radar do Câncer. Painel Covid. Disponível em: http://radardocancer.org.br/painel/covid/.

  3. Instituto Nacional do Câncer. Estatísticas do Câncer. Disponível em: https://www.inca.gov.br/numeros-de-cancer.

  4. Zero Hora. Número de mortes por câncer no RS é maior que a média nacional. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/2019/12/numero-de-mortes-por-cancer-no-rs-e-maior-do-que-a-media-nacional-ck3oogj7401rh01ll6pxw54l8.html

  5. Terra. Até 2030 o câncer deve ser a principal causa de morte no mundo, segundo pesquisas. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/dino/ate-2030-o-cancer-deve-ser-a-principal-causa-de-morte-no-mundo-segundo-pesquisas,06ef2a82d51ec0be1dc1e62fff94ade5mhbsjxs8.html

  6. Estudo AMAZONA III/GBECAM 0115 - P2-09-11. Prevalence of patients with indication of genetic evaluation for hereditary breast and ovarian syndrome in the Brazilian cohort study - AMAZONA III. 2019. Disponível em: https://www.abstractsonline.com/pp8/#!/7946/presentation/701.

  7. Agência Nacional de Saúde. Dados Gerais. Disponível em: https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais