Desde a criação da primeira vacina no século 18, pelo médico e naturalista inglês Edward Jenner (1749-1823), doenças infectocontagiosas que deixadas a seu próprio curso dizimariam boa parte da população mundial puderam ser combatidas.
Graças aos programas de imunização em massa, algumas chegaram a ser varridas da face da Terra. Uma das mais violentas, a varÃola, por exemplo, foi erradicada em 1980. Outras, como a gripe, a poliomielite, o sarampo e, mais recentemente, a COVID-19, são prevenÃveis. Mas, para que continuem sob controle, é imprescindÃvel manter o esquema de imunização em dia, como preconizam as autoridades nacionais de saúde. E essa é uma missão que cabe a cada um de nós –e a todos nós.
Não é, no entanto, o que vem acontecendo. A maioria dos paÃses não conseguiu cumprir as metas estipuladas pela Organização Mundial da Saúde de cobertura vacinal contra o novo coronavÃrus, o SARS-CoV-21. Em 18 de agosto, quase 80% da população brasileira havia completado o primeiro ciclo de imunização. Os que receberam as doses adicionais, porém, não chegavam a 48% 2. É preocupante. Depois de seis meses da segunda dose, as defesas do organismo tendem a cair. Com o reforço vacinal, os nÃveis de anticorpos são restabelecidos3.
Imagine a imunização como um muro, propõe a pediatra Bárbara Furtado, diretora médica associada internacional de Vacinas e Imunoterapia da farmacêutica AstraZeneca. Esse muro tem de ser alto o suficiente para impedir a passagem de vÃrus e bactérias. Com 80% ou mais da população devidamente imunizada, a barreira está em um patamar adequado. "O risco de o ‘bicho’ pular esse muro é muito baixo", ilustra a especialista. "Uma cobertura de apenas 50% significa que o muro está baixo demais."
Alguns microrganismos até podem ser barrados. Outros, no entanto, como o SARS-CoV-2 e o vÃrus do sarampo, são exÃmios saltadores e, com muita facilidade, ultrapassam o obstáculo. Em livre circulação, passam de pessoa para pessoa. Nesses casos, as doses de reforço são como operários incansáveis, que empilham um tijolo em cima do outro, de modo a manter o muro lá nas alturas.
Fácil entender, portanto, porque manter o esquema de imunização atualizado é uma responsabilidade individual com impacto na saúde coletiva. "Quando alguém se vacina, diminui o risco de ficar doente e, consequentemente, de transmitir a doença", explica Bárbara. Ou seja, quem se imuniza protege a si mesmo e aos outros. Em especial, completa a especialista, os grupos mais vulneráveis.
No caso da COVID-19, crianças com menos de três anos, para as quais a imunização ainda não foi liberada, e pacientes imunodeprimidos e idosos que, mesmo vacinados, são mais propensos a desenvolver as formas graves da doença.
O isolamento imposto pela crise sanitária levou a uma queda nas taxas globais devacinação . Mas, antes da pandemia, esses Ãndices já estavam em declÃnio. "Em 2016, o Brasil registrou a menor cobertura vacinal em uma década", conta a pediatra Bárbara. Naquele ano, apenas metade da população foi vacinada, conforme o preconizado pelo Ministério da Saúde4. Com isso, doenças já controladas ameaçam voltar. Algumas, inclusive, já estão aÃ.
Com um programa nacional de imunizações tido como um dos melhores do mundo, em 2019, o Brasil perdeu a certificação de "paÃs livre do sarampo"5. Entre 2017 e 2021, a cobertura da vacina trÃplice viral, que, além da doença, também protege contra a caxumba e a rubéola, caiu de 86,2% para 71,4%. Com isso, quase 40 mil novos casos foram registrados, no triênio 2019- 20214.
Para a diretora da AstraZeneca, uma série de fatores explica a baixa adesão. "O primeiro é o sucesso do programa de vacinação", diz ela. "Muitas pessoas, entre elas até profissionais de saúde, passaram a achar que essas doenças não ofereciam mais perigo." Essa falsa sensação de segurança levou muita gente a acreditar ser melhor ter "uma versão mais leve" dessas infecções do que ser imunizado.
Também há quem defenda que os vÃrus e bactérias só circulam em ambientes mais pobres. "Essas crenças vão contra tudo o que a medicina nos tem revelado", reforça a pediatra. Veja o sarampo. Altamente contagioso, mata dez em cada 100 crianças de até cinco anos. E, como o SARS-CoV-2 mostrou, os micróbios são bastante democráticos. Baixou a guarda, eles atacam.