Você pode nem prestar muita atenção, mas a inteligência artificial – também chamada de IA – já faz parte do seu dia a dia. Ela está presente nos mais diversos setores, como no apoio aos diagnósticos médicos, na busca por maior eficiência nos processos de irrigação do solo e até mesmo naquele atendimento que você acabou de fazer via chat para fechar sua última compra online. Parece coisa de filme de ficção científica e, na verdade, até é, só que aqui e agora, e não naquele futuro distante onde carros voam e hotéis recebem hóspedes em Marte.
Para Marcela Vairo, diretora de Dados, Automação e AI Apps da IBM Brasil, a tecnologia que inspirou tantas produções sci-fi é mais real e presente do que imaginamos, embora, como ela mesma ressalta, "seja apenas a ponta do iceberg". Entusiasta das novas tecnologias, Marcela tem como principal missão ajudar empresas a acelerar a transformação digital com o uso de soluções de inteligência artificial, digitalização e modernização com agilidade e segurança por meio da nuvem híbrida.
Formada em engenharia de produção pela Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo) com pós-graduação em administração de empresas pela Fundação Getulio Vargas e MBA em negócios pelo Ibmec (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais), Marcela está há 23 anos na IBM e vem acompanhando de perto a evolução e o surgimento de novas tecnologias capazes de habilitar o desenvolvimento e o amadurecimento de empresas dos mais variados setores, como o varejo e o financeiro.
A seguir, ela fala um pouco mais sobre a revolução provocada pela IA e a adoção da nuvem na gestão e na segurança dos negócios, a chegada do 5G, os principais desafios que ainda estão por vir e como a pandemia de Covid-19, apesar de toda a devastação causada ao redor do mundo, acabou por acelerar a inovação e a transformação digital das empresas. Confira.
Em que medida a pandemia de Covid-19, que se impôs como um enorme desafio para a população global nos últimos anos, acabou por incentivar a inovação e acelerar o processo de transformação digital nas empresas?
Foi uma aceleração enorme porque as empresas tiveram de optar entre digitalizar ou fechar as portas. A área de inteligência artificial para atendimento a clientes e funcionários, por exemplo, mais que dobrou na América Latina. Muitos processos e operações também tiveram de ser automatizados e robotizados. Fábricas ficaram fechadas ou tiveram de trabalhar com menos pessoas. Empresas de seguros passaram a fazer vistorias de forma digital. Mudou tudo. E essas mudanças não têm volta.
Quais foram as tecnologias que mais apoiaram as empresas nessa aceleração?
Nuvem, inteligência artificial e segurança.
Qual foi o principal papel da nuvem?
A nuvem viabilizou a operação das empresas com flexibilidade e segurança, quesitos que durante a pandemia foram ainda muito mais importantes. Imagina um varejo que abria lojas físicas em determinadas cidades enquanto metade do país ainda estava fechado. Depois abria em outras para, logo em seguida, ser obrigado a fechar tudo de novo... Em muitos casos, isso só foi possível porque a nuvem permite, em questão de horas ou segundos, subir um servidor para atender uma aplicação e rapidamente voltar à estrutura original, dependendo do que estiver acontecendo com a operação. Além disso, precisamos considerar que as empresas ficaram mais digitais e, ao mesmo tempo, mais suscetíveis a ataques cibernéticos. De uma hora para outra, os funcionários foram trabalhar de casa. Não houve tempo para treinamentos nem nada nesse sentido.
Como a nuvem entrega mais segurança para as operações?
A nuvem é monitorada por especialistas. Isso permite que as empresas possam focar o seu "core business" (negócio principal), sem precisar manter uma enorme equipe de segurança para fazer esse trabalho. Mas não é só isso. Aqui na IBM, por exemplo, conseguimos monitorar 150 bilhões de eventos (tentativas de ataque, vulnerabilidades etc.) por dia. É humanamente impossível fazer esse monitoramento apenas com pessoas olhando um cockpit. Por isso, por trás da nuvem, temos inteligência artificial que detecta possíveis ameaças e reage rapidamente a elas. IA está relacionada a cloud, que está relacionada à segurança – e vice-versa. As três tecnologias estão interligadas.
"Por trás da nuvem, temos inteligência artificial que detecta possíveis ameaças e reage rapidamente a elas. IA está relacionada a cloud, que está relacionada à segurança – e vice-versa. As três tecnologias estão interligadas"
A tecnologia de nuvem híbrida, que cria ambientes integrados e capacidade de rápida expansão, foi se tornando arquitetura de TI dominante nesse período. Quais as principais vantagens desse tipo de nuvem?
A vantagem da nuvem híbrida é a flexibilidade para atender as necessidades de cada empresa ou de cada aplicação. Há empresas que precisam que determinados dados residam em suas estruturas físicas por questão de regulamentação ou de latência. Para algumas aplicações, milissegundos fazem diferença na resposta e não vale a pena viajar até um servidor remoto, por exemplo. Na maior parte dos casos, então, temos algumas aplicações rodando dentro de casa e outras rodando em nuvem. Para ser flexível e ter agilidade de resposta, porém, é preciso primeiramente entender o que faz sentido para cada empresa, o que deve ficar em cada lugar. Depois, precisamos integrar todas essas aplicações e informações. Imagine por exemplo uma informação de venda via aplicativo de ecommerce que está na nuvem e precisa chegar ao sistema de estoque, que pode estar no servidor físico, perto do chão de fábrica. O mundo híbrido é vantajoso na medida em que faz com que as coisas se comuniquem de acordo com a melhor configuração para cada necessidade. Nós falamos híbrido, mas, na verdade, acreditamos que o mundo será híbrido e multicloud.
O que isso significa?
Significa que as aplicações usarão diversas nuvens espalhadas geograficamente. Nós lançamos neste ano o MZR da IBM, a Cloud Multizone Region, que distribui a nuvem por vários data centers para as empresas não ficarem dependentes de uma estrutura física que está em um determinado lugar. Se houver qualquer evento de infraestrutura de rede, é possível acionar rapidamente um backup em outra instalação, o que dá ainda mais segurança para a operação.
Além de segurança, quais são os principais usos da inteligência artificial?
São muitos os usos, entre eles atendimento, compliance, prevenção de fraudes e gestão da própria infraestrutura de TI. No atendimento ao cliente, por exemplo, IA foi intensamente utilizada como forma de a empresa estar disponível 24x7, de maneira digital. Muitas vezes associamos IA ao ato de se falar com uma máquina, mas essa tecnologia evoluiu muito com o uso da linguagem natural, que consegue entender o que o cliente está dizendo. Quando bem implementada, com uma boa curadoria por trás, o atendimento por bots atinge um nível mais alto de satisfação dos clientes, de acerto e de resolução de problemas, do que os modelos tradicionais com atendentes humanos.
"Associamos IA ao ato de se falar com uma máquina, mas essa tecnologia evoluiu muito com o uso da linguagem natural, que entende o que o cliente está dizendo. Quando bem implementada, o atendimento por bots atinge um nível mais alto de satisfação dos clientes"
Houve algum grande case de atendimento com IA durante a pandemia?
O caso da Magalu, que cresceu muito durante a pandemia, ilustra bem o que eu disse sobre a evolução da tecnologia. A Lu, seu aplicativo de atendimento que utiliza as capacidades de inteligência artificial de IBM Watson, é muito mais do que um chatbot. Ela é quase uma influencer que acompanha a jornada do cliente, a entrega do produto e até a necessidade de fazer alguma troca. Ou seja, é uma atendente que conhece exatamente a história daquele cliente e sabe o que está acontecendo com a sua compra. Imagine que 20% dos atendimentos são resolvidos na primeira intenção e 60% das pessoas não entram em contato com o SAC após falar com o assistente virtual, o que reforça o compromisso com a efetividade nos atendimentos aos clientes. Também tivemos muitos casos de uso de IA para atendimento ao cidadão durante a pandemia. O governo da Colômbia, por exemplo, usou o Watson para informar a população sobre vacinação. No Brasil, a Prefeitura de Jundiaí implementou IA para prestar assistência aos cidadãos. Outro caso interessante é o do Burger King. No começo da pandemia, as lojas fecharam, depois reabriram com regras totalmente novas de atendimento e higiene. De uma hora para outra foi preciso treinar todas as equipes que ficam na ponta para adotar uma série de protocolos. Imagina o tamanho dessa mudança para uma rede de alimentação. A empresa usou inteligência artificial do IBM Watson Assistant para criar todo esse apoio ao colaborador.
Você falou também em uso de IA em compliance, prevenção de fraudes e gerenciamento de infraestrutura de TI. Como isso acontece?
Inteligência artificial também é usada em aplicações que a gente nem enxerga. Na IBM mesmo, usamos IA para garantir que um pedido de reembolso esteja de acordo com as nossas regras e normas. Ela também é usada para prevenção de fraudes. O Banco Inter é um caso interessante, que tem IA por trás de todas as transações digitais para identificar se quem está fazendo aquela transação é realmente o dono da conta. E, na gestão da infraestrutura de TI, as empresas ficaram digitais e não podem mais sair do ar. O fato é que o servidor não pode cair. A nuvem é super disponível, mas a empresa precisa monitorar as aplicações que rodam na nuvem para evitar que ocorram falhas. Quem faz isso? A inteligência artificial, seja na nuvem ou dentro de casa. É por isso que eu digo que estamos apenas na ponta do iceberg.
Isso significa que o uso de IA deve continuar aumentando nos próximos anos?
Exatamente. Nós fizemos uma pesquisa no ano passado com empresas do mundo inteiro, incluindo o Brasil, e percebemos que 40% dos profissionais de TI entrevistados aqui afirmam usar inteligência artificial em seus negócios. Na América Latina, eram apenas 21%. Há muito espaço para crescer. E, entre os 40% do Brasil, muitos ainda usam inteligência artificial em aplicações específicas. Os casos de uso tendem a se expandir para outras aplicações, outras áreas, até atingir cada empresa como um todo.
O 5G, que está chegando em breve, vai intensificar a utilização de aplicações com IA?
Sim, muito, porque algumas tecnologias dependem de velocidade da conexão e da latência que serão entregues pelo 5G. Há poucos dias, a IBM até anunciou uma colaboração com a Logicalis para oferecer soluções para empresas da América Latina aproveitarem os benefícios do 5G por meio de uma abordagem de nuvem híbrida aberta. Nossa ideia é ajudar empresas de telecomunicações a avançar em suas jornadas de transformação digital e encontrar novas maneiras de monetizar suas redes 5G.
"Temos três grandes desafios: trabalhar os dados que são produzidos pelos mais diversos dispositivos, ter gente qualificada e contar com uma infraestrutura preparada para ser híbrida e multicloud"
Nesse momento pós-pandêmico, que desafios as empresas enfrentam para alcançar o próximo nível de maturidade digital?
São três grandes desafios: trabalhar os dados que são produzidos pelos mais diversos dispositivos (considerando necessidades de governança e LGPD), ter gente qualificada, que entenda de tecnologia e de negócios e consiga unir esses dois pontos, e contar com uma infraestrutura preparada para ser híbrida e multicloud.
O IBM Watson pode ajudar as empresas a alcançar esse próximo nível?
Pode, mas é fundamental que o seu uso esteja atrelado a uma necessidade da empresa, da área ou do negócio. Não adianta usar por usar. O Watson pode ajudar uma empresa de agro, por exemplo, a analisar o solo a partir de uma imagem, entendendo suas características e determinando a quantidade de insumo e irrigação que ele deve receber para ter maior produtividade no plantio e aumentar a previsibilidade do que poderá ser extraído dali. Outro exemplo é amarrar todas essas informações com o banco que faz empréstimo para financiar aquela produção. Indo para o mercado financeiro, podemos usar inteligência artificial para trabalhar dados e oferecer o melhor produto, com a melhor taxa para cada cliente em cada momento de vida. São muitas variáveis que precisam ser cruzadas e trabalhadas dinamicamente para sempre ter a melhor oferta no momento certo. O planejamento será cada vez mais dinâmico em todos os segmentos – e a inteligência artificial também estará cada vez mais presente na modelagem de dados. Nós temos um projeto muito bacana para a determinação do melhor diagnóstico e tratamento para AVC (Acidente Vascular Cerebral), desenvolvido pelo Centro de Inteligência Artificial que tem participação da IBM, da USP (Universidade de São Paulo) e da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Existem vários tipos de AVC e cada um tem um tratamento específico. Por isso, quanto mais a inteligência artificial é utilizada para determinar padrões, maior pode ser a assertividade do tratamento. Não existem limites para a inteligência artificial. Estamos só começando.