Entre as doenças crônicas não transmissÃveis, qual delas deveria ser tratada como prioridade pelos governos? Para 63% dos brasileiros, o câncer. Em segundo lugar, com apenas 8%, aparecem os distúrbios cardiovasculares e o consumo abusivo de álcool. E tais percepções independem da região do paÃs, gênero, idade, raça, grau de instrução e renda familiar, segundo uma pesquisa do Datafolha, feita a pedido do Instituto Oncoguia.
"A população brasileira entende, escolhe e pede, em alto e bom som, que o câncer seja a doença mais priorizada por nossos governantes", diz a psico-oncologista Luciana Holtz, fundadora e presidente da ONG de informação, apoio e defesa dos direitos dos pacientes portadores da doença. "Temos de fazer esse recado chegar a quem lidera o nosso paÃs e a quem quer liderar. Ano eleitoral, certo? Mais do que nunca a opinião da população deve ser ouvida." Com essa provocação, Luciana abriu o 12º Fórum Nacional Oncoguia – Priorizando o câncer além da pandemia.
Se essa mensagem era importante antes da crise sanitária, agora tornou-se preponderante. O foco no combate à Covid e o medo da contaminação levaram ao adiamento de consultas, exames e tratamentos. Diagnósticos tardios implicam em doença detectada em estágios mais avançados, com menor chance de cura, de abordagem mais complexa e, frequentemente, mais cara.
Ainda que as estatÃsticas apontem para a retomada dos serviços de atenção oncológica, o problema não está resolvido. Ao contrário. Aos pacientes que haviam postergado os cuidados somam-se os novos doentes. E o sistema que já operava no limite fica ainda mais sobrecarregado.
As neoplasias malignas são a segunda causa de morte natural, no Brasil, com cerca de 230 mil vÃtimas fatais todos os anos —e 630 mil novos casos no mesmo perÃodo. Esses números apresentavam tendência de alta antes da pandemia. "Se usarmos a experiência do Reino Unido, podemos estimar que, entre quatro e cinco anos, a mortalidade por câncer deva crescer 20%", alerta Paulo Hoff, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia ClÃnica. Imagine-se o desafio que se tem pela frente.
E o Brasil, pelo menos neste momento, não está preparado para enfrentá-lo. Ao longo dos últimos anos, os programas de controle do câncer vêm perdendo força. "O esvaziamento da importância do Inca [Instituto Nacional do Câncer], por exemplo, é um erro", diz Luiz Antônio Santini, pesquisador associado da Fiocruz. "Causa estranheza o silêncio sepulcral do Ministério da Saúde para o enfrentamento dessa questão extremamente grave", diz José Gomes Temporão, médico sanitarista, pesquisador da Fiocruz.
Para os especialistas, é preciso ter uma polÃtica nacional para o tema. "Ou a gente tem um projeto estruturado, organizado, com liderança e planejamento, ou a gente vai ter um monte de ideias pontuais. O que mais acontece é a gente discutir, discutir, mas a vida das pessoas não muda", defende Nelson Teich, coordenador de Saúde da Rede Governança e chief of Health Economics, da 4D Path.
Mas a falta de infraestrutura e de profissionais é crônica, e os recursos são sempre escassos. "O orçamento do Ministério da Saúde sofreu uma redução de 20%. Portanto, temos de priorizar os investimentos, com base nas melhores informações", afirma Felipe Roitberg, consultor da Organização Mundial da Saúde e integrante do programa Young Leaders, da Union for International Cancer Control (UICC).
Números por números, porém, têm pouca serventia. Os dados devem ser acionáveis. Ou seja, têm de ser trabalhados de forma a permitir a definição de prioridades e a orientação das práticas mais adequadas. "Nós não temos mais espaço para discurso", completa Roitberg.