Hortas urbanas revitalizam áreas ociosas e depredadas

Atuação de comunidades, entidades, governo e empresas gera renda e leva alimentos e educação ambiental para populações mais vulneráveis ao mesmo tempo que ajuda a recuperar regiões antes tomadas pelo lixo

Horta em uma das áreas disponibilizadas pela Sabesp na Grande São Paulo

Horta em uma das áreas disponibilizadas pela Sabesp na Grande São Paulo Sabesp/Divulgação

Cada vez mais, é possível se deparar com algo há até bem pouco tempo difícil de encontrar entre ruas e avenidas da região metropolitana de São Paulo. Onde antes havia degradação, abando e desperdício de espaço, nota-se o surgimento de bem cuidadas hortas urbanas, cultivadas graças à iniciativa e à mão de obra de moradores em mutirões e parcerias com instituições organizadas, poder público e empresas. Essas últimas, inclusive, perceberam que a cessão de áreas para a produção de alimentos não apenas ajuda a melhor a qualidade de vida das comunidades vizinhas como também preserva áreas até então tomadas pelo descaso. ​

A Vila Nova Esperança, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, traz no nome o que é possível realizar quando empresas, governo e sociedade se unem. Lá funciona a horta Criando Esperança, conduzida por Maria de Lourdes Andrade Silva, a Lia, 59.

O começo foi difícil. Quando mudou para o local, ela logo descobriu que estava em uma área de proteção ambiental em processo judicial de despejo das 600 famílias da região.

Ela se tornou líder comunitária e procurou a Justiça para tentar resolver a questão. "Expliquei ao promotor que existiam 120 sítios particulares, mas só a comunidade era acusada da degradação. Argumentei que se as pessoas degradavam era por falta de conhecimento. Em vez de expulsar os moradores, era melhor ensinar educação ambiental a eles. Quando vi que o promotor não iria ouvir, resolvi agir", conta.

Mutirão em horta localizada na laje do edifício da Faculdade de Medicina da USP
Mutirão em horta localizada na laje do edifício da Faculdade de Medicina da USP - Paulo Sérgio Zembruski/Divulgação

Depois de limpar a área e passar a reciclar o lixo, em 2013 começou o projeto da horta comunitária em um terreno da Sabesp onde antes era jogado todo tipo de entulho.

Lia conseguiu com a empresa um contrato de comodato e hoje a iniciativa modelo produz mais de mil quilos de alimentos como quiabo, alface, cenoura, beterraba e berinjela. A área conta com cisterna, cozinha coletiva, salão, biblioteca, brinquedoteca, mini teatro, lago com pesqueiro e até um biodigestor para produzir gás.

No início, nada era vendido e 100% da produção ficava com os moradores. Com o tempo, viram que muitos queriam pegar os alimentos sem ajudar na produção. A comunidade criou então a "moeda esperança". Quem trabalha, ganha a moeda e pode trocá-la pelos produtos da horta. Parte dos produtos também é vendida para quem é de fora, gerando renda para a comunidade.

EMPRESAS CEDEM ÁREAS E REGULAM O USO

Para a Sabesp, esse é um modelo que pode ser replicado e no qual todos ganham. "É um programa que precisa de segurança e análise caso a caso, mas quando tocado por entidades idôneas, além do ganho da comunidade, as hortas protegem as áreas. Isso significa proteger o patrimônio público, pois o fornecimento de água é um serviço essencial para a população", explica Hélio Rubens, coordenador do Fórum Ambiental da Diretoria Metropolitana da Sabesp.

A Sabesp cede quase 21 mil m2 para produção agrícola em diferentes áreas da região metropolitana. Além de 200 agricultores, dependentes e comunidades, a ação beneficia instituições que recebem doações dos produtos cultivados. "Temos que proteger áreas onde estão adutoras, sujeitas a invasões, ocupação e usos inadequados. Os agricultores auxiliam no cuidado e na fiscalização de locais por onde passam tubulações que levam água para abastecer a população. Eles são os primeiros a perceber irregularidades no uso das faixas de servidão e colaboram para manter a área limpa."

A Enel, responsável pelo fornecimento de energia na capital, é outra empresa que cede espaços para cultivo. São cerca de 15 mil m2 nas três hortas do projeto Hortas em Rede, em São Mateus e Itaquera, zona leste de São Paulo. Nesse projeto piloto, além de disponibilizar as áreas, a Enel investiu recursos e estabeleceu métricas para avaliar os benefícios da iniciativa. "O projeto nasceu da necessidade de gestão nos locais cedidos, o que inclui segurança, educação e manutenção", explica Solange Mello, gerente de Sustentabilidade da empresa.

Cultivo em área da Enel; trabalho na horta ajuda a proteger a rede elétrica
Cultivo em área da Enel; trabalho na horta ajuda a proteger a rede elétrica - Enel/Divulgação

A maior dificuldade nesse tipo de projeto, de acordo com Solange, é o convencimento e a mobilização da comunidade do entorno. A Enel capacita os responsáveis pelas áreas, fornece insumos e orienta a segurança. Para a Enel, os resultados são animadores. "Hoje vemos alimentos, borboletas e até casas de João de Barro onde antes era um lixão". Tudo o que é produzido é vendido pelos agricultores.

"Em São Mateus, a experiência está consolidada e traz educação, conscientização e acolhimento. Nosso desejo é que o projeto cresça", completa. A Enel tem cerca de 800 km de áreas que ainda podem ser avaliados para cultivo.

HORTA NO TOPO DO HC

A horta que ocupa a laje do prédio da Faculdade de Medicina da USP, na região central de São Paulo, é mantida por voluntários. Criada há nove anos, recentemente passou a fornecer alimentos para pacientes em mais de 1.500 leitos do Hospital das Clínicas.

"Sou a favor de hortas comunitárias em terrenos e tetos verdes. Em uma cidade como São Paulo, ainda existe muito espaço urbano ocioso, especialmente nas periferias, onde mais são necessários alimentos frescos e acessíveis. A horta é um jeito de tornar a cidade mais verde, melhorar o solo, trazer biodiversidade, empoderar a comunidade, gerar trabalho e produzir um alimento limpo", explica a médica e professora Thaís Mauad, responsável pela horta da FMUSP.

Cultivo na horta comunitária Criando Esperança, em Taboão da Serra
Cultivo na horta comunitária Criando Esperança, em Taboão da Serra - Masao Goto Filho/Estúdio Folha

Ela conta que a horta começou como aprendizagem para mostrar que é possível plantar na cidade. "Agora fazemos oficinas para estimular a alimentação saudável. Há quatro anos, criamos um curso de Medicina Culinária, no qual o aluno estuda o impacto da alimentação na saúde, põe a mão na massa e cozinha. A ideia é que médicos que cozinham tenham uma noção melhor de alimentação saudável, pois acreditamos que a alimentação é a gênese de muitas doenças."

EDUCAÇÃO INCLUÍDA

Aos 6 anos, Wagner Ramalho, hoje com 42, foi morar com uma família indígena na zona rural de Presidente Prudente, interior de São Paulo. Ali aprendeu que, para comer, é preciso plantar e colher. Aos 14, quando a mãe foi buscá-lo para viver na capital, ele se deparou com uma realidade bem diferente. O estranhamento se transformou em ação e assim nasceu o projeto Prato Verde Sustentável, conduzido em parceria com a Associação Mutirão, na zona norte.

A horta está localizada em terreno particular de 3 mil m2 que estava abandonado e era vetor de mosquitos, ratos e baratas. Criada há nove anos, produz hoje de 15 a 18 toneladas de alimentos por ano e tudo o que é vendido, além de remunerar quem trabalha no local, é revertido para a própria organização.

"Somos um polo de educação ambiental, turismo e vivência rural. A horta capacita, gera renda e ensina nutrição e economia circular. Em nossas oficinas, crianças aprendem desde a captar água da chuva até a diminuir a insegurança alimentar da comunidade", diz Wagner, que atua em diversos projetos em parceria com empresas.

MAIS HORTAS COMUNITÁRIAS

Crianças em projeto de educação ambiental da iniciativa Prato Verde Sustentável
Crianças em projeto de educação ambiental da iniciativa Prato Verde Sustentável - Prato Verde Sustentável/Divulgação

Também existem hortas implantadas em terrenos públicos da capital, como parques, escolas e unidades de saúde. Já são 276 catalogadas na plataforma Sampa+Rural, criada pela prefeitura em parceria com entidades, como parte do projeto Ligue os Pontos, que abre espaço para a comercialização dos produtos em feiras livres e estabelecimentos.

Segundo a secretária de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo, Aline Cardoso, as hortas urbanas cumprem um importante papel na promoção da alimentação saudável e preservação do meio ambiente. A prefeitura está trabalhando para fortalecer a agricultura urbana e a previsão é que 400 hortas estejam estruturadas até 2024", diz.